Alguns dos nossos caríssimos leitores têm nos questionado acerca de nossa defesa do Vaticano II. Alegam que nós estamos defendendo uma aceitação “burra” do Concílio. Ora, isso não é verdade. Ao demonstrar que através de um Concílio Ecumênico a Igreja exerce de forma solene seu poder sobre toda a Igreja, estamos mostrando que as críticas ao Concílio devem se dar nos justos limites da razão e do bom senso.
Por exemplo, uma mãe que sempre criou e educou seus filhos com todo amor em meio a tantas diversidades, sempre mostrando que é digna de confiança. Certo dia, um de seus filhos acha estranha a forma como esta mãe se expressa ao falar sobre um determinado assunto, ou ainda como se comporta frente a uma situação nova. O que deve fazer este filho? Deve exigir esclarecimentos, confiando em todo testemunho que sua mãe lhe deu ou deve acusá-la de ter perdido a vergonha na cara? O que deveria esperar esta mãe? E se ainda esta mãe demorasse a esclarecer seu filho?
Esta situação hipotética nos traz lições preciosas. Seja numa relação entre pais e filhos, marido e mulher, onde o testemunho do tempo construiu toda uma estrutura de confiança, amor e idoneidade, quebrar esta relação, por conta da desconfiança e da intriga seria como abrir mão de um tesouro precioso. Se tratando da Igreja, instituição divina, fundada por Cristo, assistida por Deus Uno e Trino, a coisa é ainda mais grave.
Se há algo que não compreendemos, ou que achamos inadequado, devemos pedir orientação e esclarecimento aos nossos pastores e em último caso exigir explicações da Santa Sé. Isso é bem diverso que acusar a Igreja de ter promulgado o erro pelo seu Magistério, é bem diferente de dizer que a Igreja oferece uma Missa herética. Movimentando-se de uma coisa para a outra, deixamos de questionar e passamos a acusar, postura que é muito grave. O Católico pode e deve exigir esclarecimento sobre a Fé e a Doutrina, direito adquirido pela Tradição e promulgado no CDC (cân 212), porém sem ferir a unidade, autoridade e a idoneidade da Santa Igreja.
Vão dizer: “temos o dever de apontar os erros e quem erra”. Muito bem, no entanto a Igreja não erra. Não pode errar JAMAIS! Assim, sobre a Igreja não se aponta erros, mas se pede esclarecimento.
3. A Contradição dos “rad-trads”
Todo aquele que assume uma postura anti-Vaticano II acaba por cair em uma contradição que o leva a uma heresia. É dogma que a Igreja é Santa e que pecadores são seus membros, isto é, seus filhos. Se a Igreja é Santa e não pode ensinar o erro, como então ela ensinou o erro no Vaticano II? Vão dizer que isso foi possível porque ela não fez uso de dogmas. Ora, de qualquer forma, se a Igreja promulgou os erros que deveria combater, então Ela pecou. Não há saída.
Os ensinamentos de um Concílio são ensinamentos da Igreja. Não são ensinamentos de um Papa ou dos Bispos. Se a Igreja ainda por cima, criou um novo catecismo, emitiu novos documentos e atualizou sua doutrina social com base no Vaticano II, e neste Concílio houve a promulgação do erro, então a Igreja afundou ainda mais o “pé na jaca”. Como explicam a Igreja Santa ter pecado?
Caem na mesma sinuca em que se meteram os protestantes. Não é de se espantar que agora, tanto “rad-trads” quanto protestantes acusam a Igreja de traição, infidelidade e abandono da Palavra de Deus.
Outra contradição deles é negar o Vaticano II principalmente por não ter declarado dogmas, mas utilizam especulações de teólogos (até os modernistas), jornalistas e agências de notícias como se fossem dogmas declarados.
Julgam o Concílio por sua história, mas não utilizam o mesmo critério para dos Concílios anteriores.
Realmente no mundo do erro, a coerência não é uma virtude muito apreciada.
4. O IBP: tábua de salvação dos “rad-trads”?
O IBP (Instituto Bom Pastor) "é uma sociedade de vida apostólica de direito pontifício instituída conforme as normas do direito canônico (can, 732); seus membros querem exercer seu sacerdócio dentro da tradição doutrinal e litúrgica da Santa Igreja Católica Romana" (1). É formado por padres dissidentes da FSSPX (Fraternidade Sacerdotal São Pio X).
Os “rad-trads” dizem que a Igreja na ereção do IBP acolheu padres que não aceitam a Missa Nova e nem o Vaticano II. Ensinam que se Roma acolheu em plena comunhão padres lefebvristas, logo não é errado ao católico recusar a Missa Nova nem o Concílio. Este tipo de abordagem fica ainda mais convincente pelo fato de membros do IBP possuírem laços de amizade com líderes ou adeptos “rad-trads”.
Um amigo muito querido chegou a indicar-me a leitura das declarações do Superior do IBP, Pe. Philipe Laguérie, onde este reconheceria haver erros no Vaticano II (2) e a falta de legitimidade (não confundir com legalidade) da Missa Nova (3).
Com toda certeza, diante de todo este cenário é muito tentador aderir à cartilha anti-Vaticano II. Ainda mais quando se trabalha muito bem com a psicologia das pessoas, com palavras amáveis, gestos de carinho, demonstração de piedade, enfim um verdadeiro espetáculo de sedução que pretende levar as pessoas a enxergarem somente aquilo que o guru deseja.
Trarei informações que julgo serem de grande relevância, para que as “viseiras-de-burro” possam cair permitindo um maior raio de visão.
4.1 O acolhimento do IBP junto à Santa Sé
Há uma diferença sutil, porém significativa entre tolerância e aceitação. Um erro pode ser tolerado quando o bem a ser conquistado é maior do que se poderia conseguir atacando-o. Claro que este bem desejado inclui o próprio extermínio do erro. Não significa que esta “aceitação temporária”, esta tolerância seja um reconhecimento do erro como se fosse algo correto.
Por exemplo, num relacionamento verdadeiramente ecumênico (não relativista) com um protestante, isto é, visando a sua conversão à Verdade confiada por Cristo à Sua Igreja, posso até tolerar o erro da Sola Scriptura (não combatê-lo num primeiro momento), visando mostrar ao protestante somente pela Escritura incompleta que ele tem, o Esplendor da Verdade, que conseqüentemente o levará a abandonar a Sola Scriptura.
A Igreja ao acolher os padres que abandonaram a FSSPX e que constituem o IBP age da mesma forma. A Igreja cede para conquistar, recua para avançar, se cala para ser ouvida. São sutilezas da diplomacia romana.
Se com a acolhida dos ex-membros da FSSPX a Igreja está reconhecendo os supostos erros do Vaticano II, e dando apoio a quem nega o Concílio, o que justifica o fato desta “porta” não ter sido mais alargada e acolhido toda a FSSPX? O que justifica o fato do Papa Bento XVI dizer através do seu Motu Proprio que “libera” a Missa de S. Pio V que a questão sobre D. Lefebvre ainda não está resolvida? Por que no mesmo Motu Proprio, o Papa reconheceria a ortodoxia da Missa Nova? Por que a Congregação da Doutrina da Fé ratificou e defendeu o “subsistit in” do Vaticano II?
Há informações muito importantes que devem ser consideradas aqui. Os estatutos do IBP são experimentais. Ora, se o quadro é como os “rad-trads” o pintam, por que acolher lefebvristas com estatutos temporários ou experimentais? Não seria mais adequado acolhê-los com estatutos não-experimentais?
A experiência do IBP na Igreja é uma experiência de amor, de reconciliação. Não de licenciar o ataque ao Concílio. Já que nossos desafetos gostam tanto do que veiculam as agências de notícias, proponho a leitura das linhas abaixo:
“O Arcebispo de Bordeaux e Presidente da Conferência Episcopal de França, Cardeal Jean-Pierre Ricard explicou que o Santo Padre ‘tomou a decisão de erigir este novo Instituto’. Deste modo, continua ‘se dá a vontade de propor uma experiência de reconciliação e de comunhão que terá que afirmar e aprofundar-se com os fatos’. Os estatutos do Instituto do Bom Pastor foram aprovados com caráter experimental por um período de cinco anos” (ACI) (grifos meus).
Como era de se esperar, a Santa Sé acolheu os padres do IBP num gesto de esperança de total reconciliação. A Igreja concedeu-lhes todas as condições para que eles possam convencer-se de que o Vaticano II não é um mal em si, mas que o mal está na sua leitura liberal, fruto do espírito de porco modernista.
4.2 O IBP está licenciado a rejeitar o Vaticano II?
Em 11 de setembro de 2006, a ACI veiculou o acolhimento dos padres do IBP junto à Roma, informando o mundo católico sobre a ereção do mesmo. Esta notícia foi comentada no sítio do Prof. Felipe Aquino. Tal comentário rendeu-lhe duros ataques do Prof. Orlando Fedeli (como é de praxe), que o acusou de ter falseado a verdade. Na polêmica foi envolvido o Pe. Rafael Navas Ortis, Superior do IBP na América Latina (4).
Um estudo bem consistente de toda aquela polêmica é digno de um livro. Com efeito, há informações ali que os leitores menos atentos deixam passar com facilidade. Por isso, nos satisfaremos em dizer que o Prof. Felipe Aquino não se enganou de todo, e que todo aquele circo no qual o Pe. Navas acabou envolvido, seja porque não leu o que escreveu o Prof. Felipe Aquino ou porque não entendeu a missão do próprio instituto do qual faz parte, foi muito bem arquitetado para ser utilizado como suposta prova contra o Vaticano II.
Em 5 de outubro de 2006 (isto é, poucos dias após a controvérsia acima referida), o Cardeal Jean-Pierre Ricard, que é o supervisor do IBP junto à Santa Sé através da Comissão Ecclesia Dei, declarou que os padres do IBP devem aceitar “o atual magistério do Papa e dos Bispos”, acrescentou ainda que eles devem deixar “clara sua posição de conformidade com o magistério atual que se expressou no Concílio do Vaticano II, bem como os documentos promulgados por ele”. Insiste o Cardeal que a oferta de amor estendida aos padres do IBP, não deve “reabrir questões sobre o caminho tomado pela Igreja durante os últimos 40 anos” (5) (grifos meus).
Um mês depois desta entrevista (aproximadamente em 06 de Novembro de 2006), Pe. Philipe Laguérie é chamado à Roma para dar explicações sobre suas declarações “dinamitosas” sobre o Concílio do Vaticano II. Fato este que chegou a ser ridicularizado pela FSSPX (6).
Ora, será mesmo que o IBP tem licença para atirar no Vaticano II?
Neste ano de 2007, na oportunidade da visita do Santo Padre ao Brasil, um Bispo amigo nosso e de grande importância entre os fiéis tradicionalistas recebeu a informação do Card. Castrillon Hoyos (presidente da Comissão Ecclesia Dei, e que assinou os estatutos do IBP), de que IBP não está autorizado a rejeitar o Vaticano II, confirmando o que havia dito Card. Ricard, supervisor do IBP.
Claro que há uma diferença entre não poder rejeitar o Concílio e ser obrigado a aceitá-lo. Como disse certa vez um amigo meu: “não se pode esperar de um luterano recém convertido, que o mesmo use imediatamente incenso ou que tenha em casa uma imagem de Nossa Senhora”. Aplicando isso aos padres do IBP, não se pode esperar que estes homens que outrora estavam na FSSPX, de uma hora para a outra, como num passe de mágica, admitam tudo o que a Igreja ensinou e fez depois do Vaticano II. É compreensível que os padres do IBP, tenham muitas reservas quanto ao Concílio. Porém, é significativo que eles não tenham permissão para serem franco-atiradores do Concílio. E é aí que está o detalhe, é aí que está a sutileza de toda questão.
Lembremos que a Igreja com a ereção do IBP abriu um caminho de reconciliação aos dissidentes da FSSPX, cujos frutos ainda se esperam, conforme atestamos nas palavras do Card. Ricard: “se dá a vontade de propor uma experiência de reconciliação e de comunhão que terá que afirmar e aprofundar-se com os fatos”. Completa o purpurado que somente o futuro mostrará se esta experiência foi “uma iniciativa promissora ou uma falsa esperança” (5).
4.3 A oferta de amor da Igreja ao IBP já começou a dar frutos
Já é possível notar uma mudança de postura no próprio IBP. Pe. Laguérie já reconhece o poder do Papa de reformar a Liturgia (3), levando-o a aceitar a legalidade da Missa Nova. Esta tese é fortemente contestada pela FSSPX (7), o que rendeu críticas desta aos ex-correligionários.
Pe. Tenoüarn, membro do IBP e secretário do Pe. Laguérie, já admite não só a legalidade da Missa Nova, mas também sua legitimidade. É o que podemos constatar em sua declaração em Valerus Actuelles (França) em 1 de dezembro de 2006: “[...] apenas do ponto de vista destas diferenças de tom, que não é necessário fazer grande exagero, mas que existem, e a nossa conversa mostra isso, creio que se faz necessário aceitar a diferença de ritos, e também que se possa preferir de forma fundamentada e profunda, não apenas subjetiva ou estética, o rito tradicional. Depois de dizê-lo, bem entendido, se em nome dessa preferência se anatemizam todos os demais, e se declara que o rito novo não é legítimo, não estaremos fazendo nada pela Igreja” (grifos meus).
Claro que esta mudança de postura é enxergada pelos “rad-trads” como traição à causa “tradicionalista”. O que é melhor trair falsos mestres ou trair a Deus?
5. Os verdadeiros tradicionalistas estão em Roma
Desde o término do Concílio quando D. Lefebvre começou a liderar a frente anti-Vaticano II, muitos de seus adeptos acabaram por reconhecer os próprios erros. Dois belíssimos exemplos e bem conhecidos são os padres da Fraternidade Sacerdotal São Pedro (FSSP) e os padres da Administração Apostólica Pessoal São João Maria Vianney (Padres de Campos-RJ).
Eles assim como o IBP retornaram à Igreja cheios de reservas ao Vaticano II. Os passos que o IBP está dando, eles já deram no passado. E o Esplendor da Verdade acabou os convencendo de que os erros não estão no Vaticano II.
Como é belíssimo ver, Pe. Vicent Ribeton, um ex-lefebvrista declarar: “Não creio que celebrar a missa segundo o novo ordo, evidentemente com a observância das rubricas, possa, em si, constituir uma desordem moral objetiva. Dizer o contrário equivaleria a afirmar que a Igreja teria promulgado um rito intrinsecamente mau, o que parece impossível de sustentar sem cair no sedevacantismo. Não estou convencido de que o novo rito exprima muito adequadamente cada uma das realidades que se atualizam no altar, mas isso não significa, por essa razão, que seja heterodoxa. De fato, as condições de validade e de ortodoxia de um rito constituem um mínimo, e a Igreja sempre assumiu ritos de maior ou menor riqueza, até mesmo, perdoem-me a expressão, de certa pobreza” (8) (grifos meus).
6. Conclusão
Pe. Leonel Franca (9) ensinou certa vez que os dois maiores obstáculos à Verdade são o orgulho e a vaidade. Porém, almas sinceras são capazes de resistir bravamente às forças impetuosas destes inimigos poderosos. Foram o orgulho e a vaidade que cegaram Satanás que era eminente Anjo de Luz. Este seduzido por si próprio e imbuído de sua própria ilusão convenceu outros anjos a seguirem-no. Se os dois grandes obstáculos da Verdade causaram tanto mal até mesmo aos anjos, que grandes males não farão a uma pobre alma humana?
De forma análoga, pessoas de mentes de grande inteligência e capacidade, seduzidos por si mesmos e imbuídos de suas próprias ilusões, acabam por seduzir a outros levando-os a pensar que a recepção do IBP pela Igreja é uma aceitação ao ataque ao Vaticano II. Nada mais falso.
O Novo Catecismo da Santa Igreja é atualizado pelo Magistério do Vaticano II. O mesmo se aplica ao Compêndio do Catecismo que é um resumo daquele. A Doutrina Social da Igreja é riquíssima em referências ao Vaticano II, o mesmo seu compêndio. Os últimos Papas ensinaram citando os documentos do Concílio, o Motu Proprio do Papa Bento XVI o ratifica. Vários ex-lefebvristas hoje defendem o Concílio.
O Vaticano II faz parte da Tradição da Igreja. Rezemos para que mais católicos acordem do “encanto da sedução” e percebam que fora do Magistério da Igreja não há Verdade. Rezemos para que o IBP ajude a Santa Sé não só a dar a justa hermenêutica do Concílio, mas também que através deste belíssimo trabalho reconheça sua ortodoxia.
Só podemos desejar ao IBP todas as bênçãos do Pai, do Filho e do Espírito Santo e oferecer todo o nosso amor.
O Concílio Vaticano II introduziu um "culto ao homem" na Igreja?
Curiosamente, quando leio esses textos, raramente vejo uma referência decente a esse discurso: uma frase inteira, ou mesmo o link para a íntegra do discurso; os acusadores se limitam a falar que Paulo VI mencionou o “culto ao homem”. Pois bem, vejamos então o que o Papa realmente disse. Veja mais em: Discurso do Papa Paulo VI no encerramento do Concílio Vaticano II
A frase que dá calafrios nos rad-trads é:
“Vós, humanistas do nosso tempo, que negais as verdades transcendentes, dai ao Concílio ao menos este louvor e reconhecei este nosso humanismo novo: também nós – e nós mais do que ninguém somos cultores do homem.”
Quando lêem “cultores do homem”, os rad-trads rasgam as vestes, soltando gritos horrorizados como aquela personagem da Escolinha do Professor Raimundo que desmaiava sempre que ouvia uma palavra esquisita que imaginava ser pornográfica.Mas, como se diz por aí, texto fora do contexto vira pretexto. Os acusadores do Concílio destacam apenas essa parte e esquecem todo o resto. Essa frase de Paulo VI conclui um longo raciocínio sobre o Concílio, que reproduzimos aqui:
Na verdade, a Igreja, reunida em Concílio, entendeu sobretudo fazer a consideração sobre si mesma e sobre a relação que a une a Deus; e também sobre o homem, o homem tal qual ele se mostra realmente no nosso tempo: o homem que vive; o homem que se esforça por cuidar só de si; o homem que não só se julga digno de ser como que o centro dos outros, mas também não se envergonha de afirmar que é o princípio e a razão de ser de tudo. Todo o homem fenoménico – para usarmos o termo moderno – revestido dos seus inúmeros hábitos, com os quais se revelou e se apresentou diante dos Padres conciliares, que são também homens, todos Pastores e irmãos, e por isso atentos e cheios de amor; o homem que lamenta corajosamente os seus próprios dramas; o homem que não só no passado mas também agora julga os outros inferiores, e, por isso, é frágil e falso, egoísta e feroz; o homem que vive descontente de si mesmo, que ri e chora; o homem versátil, sempre pronto a representar; o homem rígido, que cultiva apenas a realidade científica; o homem que como tal pensa, ama, trabalha, sempre espera alguma coisa, à semelhança do “filius accrescens”; o homem sagrado pela inocência da sua infância, pelo mistério da sua pobreza, pela piedade da sua dor; o homem individualista, dum lado, e o homem social, do outro; o homem “laudator temporis acti”, e o homem que sonha com o futuro; o homem por um lado sujeito a faltas, e por outro adornado de santos costumes; e assim por diante. O humanismo laico e profano apareceu, finalmente, em toda a sua terrível estatura, e por assim dizer desafiou o Concílio para a luta. A religião, que é o culto de Deus que quis ser homem, e a religião – porque o é – que é o culto do homem que quer ser Deus, encontraram-se. Que aconteceu? Combate, luta, anátema? Tudo isto poderia ter-se dado, mas de facto não se deu. Aquela antiga história do bom samaritano foi exemplo e norma segundo os quais se orientou o nosso Concílio. Com efeito, um imenso amor para com os homens penetrou totalmente o Concílio. A descoberta e a consideração renovada das necessidades humanas — que são tanto mais molestas quanto mais se levanta o filho desta terra — absorveram toda a atenção deste Concílio. Vós, humanistas do nosso tempo, que negais as verdades transcendentes, dai ao Concílio ao menos este louvor e reconhecei este nosso humanismo novo: também nós – e nós mais do que ninguém somos cultores do homem.
O parágrafo, se lido com a atenção devida, é auto-explicativo: a Igreja está apresentando ao mundo o seu humanismo. Não o humanismo que deixa Deus de lado, mas o humanismo que reconhece a dignidade do homem e declara querer satisfazer a sua maior necessidade: a necessidade de Deus. Não é para isso que a Igreja existe, para nos conduzir à vida eterna? Paulo VI não está falando de “adoração ao homem”, e sim de preocupação, de cuidado, de atenção.
Na descrição do Papa, quando “o humanismo laico e profano desafiou o Concílio para a luta”, duas “religiões” se encontraram: o cristianismo (o culto de Deus que quis ser homem) e o laicismo (a religião do homem que quer ser Deus). A Igreja, inteligentemente, quando desafiada pelo humanismo ateu, não partiu para o confronto aberto e ostensivo. Em vez disso, combate o humanismo ateu apresentando a alternativa: o seu humanismo, um humanismo diferente, que parte do princípio de que o homem é filho de Deus e anseia por Ele.
É esse o sentido das palavras do Papa. Nada de “adoração ao homem”. Nada de “síntese do catolicismo com o humanismo que despreza Deus”. Para ler o contrário disso, é preciso uma boa dose de ignorância, ou de má-fé contra o Magistério da Igreja.
A frase que dá calafrios nos rad-trads é:
“Vós, humanistas do nosso tempo, que negais as verdades transcendentes, dai ao Concílio ao menos este louvor e reconhecei este nosso humanismo novo: também nós – e nós mais do que ninguém somos cultores do homem.”
Quando lêem “cultores do homem”, os rad-trads rasgam as vestes, soltando gritos horrorizados como aquela personagem da Escolinha do Professor Raimundo que desmaiava sempre que ouvia uma palavra esquisita que imaginava ser pornográfica.Mas, como se diz por aí, texto fora do contexto vira pretexto. Os acusadores do Concílio destacam apenas essa parte e esquecem todo o resto. Essa frase de Paulo VI conclui um longo raciocínio sobre o Concílio, que reproduzimos aqui:
Na verdade, a Igreja, reunida em Concílio, entendeu sobretudo fazer a consideração sobre si mesma e sobre a relação que a une a Deus; e também sobre o homem, o homem tal qual ele se mostra realmente no nosso tempo: o homem que vive; o homem que se esforça por cuidar só de si; o homem que não só se julga digno de ser como que o centro dos outros, mas também não se envergonha de afirmar que é o princípio e a razão de ser de tudo. Todo o homem fenoménico – para usarmos o termo moderno – revestido dos seus inúmeros hábitos, com os quais se revelou e se apresentou diante dos Padres conciliares, que são também homens, todos Pastores e irmãos, e por isso atentos e cheios de amor; o homem que lamenta corajosamente os seus próprios dramas; o homem que não só no passado mas também agora julga os outros inferiores, e, por isso, é frágil e falso, egoísta e feroz; o homem que vive descontente de si mesmo, que ri e chora; o homem versátil, sempre pronto a representar; o homem rígido, que cultiva apenas a realidade científica; o homem que como tal pensa, ama, trabalha, sempre espera alguma coisa, à semelhança do “filius accrescens”; o homem sagrado pela inocência da sua infância, pelo mistério da sua pobreza, pela piedade da sua dor; o homem individualista, dum lado, e o homem social, do outro; o homem “laudator temporis acti”, e o homem que sonha com o futuro; o homem por um lado sujeito a faltas, e por outro adornado de santos costumes; e assim por diante. O humanismo laico e profano apareceu, finalmente, em toda a sua terrível estatura, e por assim dizer desafiou o Concílio para a luta. A religião, que é o culto de Deus que quis ser homem, e a religião – porque o é – que é o culto do homem que quer ser Deus, encontraram-se. Que aconteceu? Combate, luta, anátema? Tudo isto poderia ter-se dado, mas de facto não se deu. Aquela antiga história do bom samaritano foi exemplo e norma segundo os quais se orientou o nosso Concílio. Com efeito, um imenso amor para com os homens penetrou totalmente o Concílio. A descoberta e a consideração renovada das necessidades humanas — que são tanto mais molestas quanto mais se levanta o filho desta terra — absorveram toda a atenção deste Concílio. Vós, humanistas do nosso tempo, que negais as verdades transcendentes, dai ao Concílio ao menos este louvor e reconhecei este nosso humanismo novo: também nós – e nós mais do que ninguém somos cultores do homem.
O parágrafo, se lido com a atenção devida, é auto-explicativo: a Igreja está apresentando ao mundo o seu humanismo. Não o humanismo que deixa Deus de lado, mas o humanismo que reconhece a dignidade do homem e declara querer satisfazer a sua maior necessidade: a necessidade de Deus. Não é para isso que a Igreja existe, para nos conduzir à vida eterna? Paulo VI não está falando de “adoração ao homem”, e sim de preocupação, de cuidado, de atenção.
Na descrição do Papa, quando “o humanismo laico e profano desafiou o Concílio para a luta”, duas “religiões” se encontraram: o cristianismo (o culto de Deus que quis ser homem) e o laicismo (a religião do homem que quer ser Deus). A Igreja, inteligentemente, quando desafiada pelo humanismo ateu, não partiu para o confronto aberto e ostensivo. Em vez disso, combate o humanismo ateu apresentando a alternativa: o seu humanismo, um humanismo diferente, que parte do princípio de que o homem é filho de Deus e anseia por Ele.
É esse o sentido das palavras do Papa. Nada de “adoração ao homem”. Nada de “síntese do catolicismo com o humanismo que despreza Deus”. Para ler o contrário disso, é preciso uma boa dose de ignorância, ou de má-fé contra o Magistério da Igreja.
As maldições hereditárias e sua incompatibilidade com a Sã Doutrina
Hoje existem milhares de seitas que estão a pregar entre seus membros ou aos que aproximam-se de suas comunidades a “cura de gerações” geralmente chamada de “maldições hereditárias”, seus progenitores alegam que esta é uma doutrina cristã, na verdade não é como veremos ao longo do texto.
Esta crença e prática supersticiosa é basicamente oriunda das seitas neo-pentecostais, também designada como o evangelho da maldição ou quebra de maldições, maldições hereditárias, maldição de família e pecado de geração. No Brasil a crença tem origem com a “Igreja” Renascer em Cristo e também na seita de Edir Macedo.
Esta pseudo doutrina que é produto de um moderno misticismo supersticioso, é aparentemente conciliável com a concepção de “carma” ou “karma” no budismo oriental. Para entendermos o que representa esta “aberração doutrinaria” ela corresponde em síntese a:
Um mal invisível, cujo homem não vê, e que pode ter atingido ou atingir qualquer ser humano por intermédio do que eles denominam de “espíritos familiares”, transmitido durante séculos pela linhagem sanguínea e por influência destes mesmos “espíritos” que exercem algum “poder” ou “magia” - como alegam os progenitores desta pseudo doutrina -, com aflições espirituais e corporais sob os que a possuem, até que tal “maldição” seja quebrada através de libertações geralmente produzidas por pastores protestantes.
A expressão “espíritos familiares” que usei acima é utilizada arbitrariamente pelos pregadores de tal crença para justificá-la biblicamente, o termo é retirado de citações do Antigo Testamento, como (Levítico 19,31); na versão bíblica “King James” tradução produzida pela Igreja Anglicana.
Esta expressão é usada para designar “entidades”, “demônios” e “anjos decaídos” que exercem nos adivinhos a atividade da comunicação com os mortos e com os cristãos atuando na condução dos mesmos no âmbito de suas inclinações emocionais, sentimentais, carnais e físicas ao pecado. A palavra “familiares” no plural é utilizada para complementar a denominação destes “espíritos” pelo fato destes, como alegam os pregadores desta crença, terem forte influência e pendurarem em gerações de famílias humanas com seus planos nefastos.
É completamente descabida esta argumentação, a versão “King James” inglesa da Bíblia, não é uma das melhores traduções bíblicas como seguram muitos cristãos, é oriunda de exegetas e tradutores protestantes, alguns deles puritanos. A grande tradução das Escrituras produzida por São Jerônimo nos séculos IV e V, que chamamos de Vulgata Latina, ocupou a reflexão da Igreja por séculos e os textos latinos nada mencionam o termo “espíritos familiares” assim como as versões católicas recentes não aludem. Esta versão é uma clara iniciativa da exegese que se desenvolveu na Inglaterra em contraposição à “Vulgata” católica e também a exegese católica.
Assim forjar textos e procurar traduções cômodas para justificar conceitos e “doutrinas” não traduz princípios básicos de hermenêutica é pura picaretagem moderna. O que foi guardado e transmitido à Igreja nos textos bíblicos antigos que São Jerônimo usou, além é claro da tradicional interpretação do Magistério sobre estes aspectos da teologia, não repercute nem induz qualquer afirmação da existência de “espíritos familiares” quando traduzido para língua latina e nem tampouco para a língua portuguesa.
Pode surgir a pergunta: as Sagradas Escrituras dão embasamento para afirmar que os cristãos podem estar de alguma forma sob o jugo de maldições ancestrais ou qualquer tipo de crença parecida?
A resposta é não. Isto nunca foi parte da pregação apostólica e nem encontra fundamento nos textos bíblicos. Os Padres da Igreja nunca mencionaram tal crença entre os cristãos no decorrer dos cinco primeiros séculos. Aliás os textos bíblicos refutam qualquer possibilidade de “gerações” levarem ou trazerem qualquer peso, mancha ou maldições ou ainda os pecados de seus pais. Vejamos o que diz o profeta Ezequiel:
“Contudo perguntais: Por que não levará o filho a maldade do pai? Porque o filho fez justiça e juízo, guardou todos os meus estatutos, e os praticou, por isso certamente viverá. A alma que pecar, essa morrerá. O filho não levará a maldade do pai, nem o pai levará a maldade do filho. A justiça do justo ficará sobre ele, e a impiedade do ímpio cairá sobre ele”. (Ez 18,19-20).
Há outros textos e citações (Dt 24,16: Jr 31,30: Ez 18, 2-4: Ex 18,4; 20, 5-6: Lv 19, 17) que fazem oposição a qualquer afirmação que alude a esta crença supersticiosa oriunda do neo-pentecostalismo. Não existe compatibilidade desta crendice protestante com a “Sã doutrina”. Boas considerações a respeito do pecado, o perdão de Deus, os sacramentos [exemplo o Sacramento do Batismo que regenera o ser humano e o torna filho de Deus, trazendo-o ao convívio com a graça de Deus, por libertar-nos do pecado original, pelo Batismo somos incorporados em Cristo e na sua única Igreja], julgamento particular e etc. acabam por aniquilar qualquer possibilidade de “maldição hereditária”.
“Deus é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça” (I Jo 1,9), ou seja, ele não leva em conta as “faltas dos pais sobre os filhos” como podemos ler acima. Como então estas supostas faltas ou maldições e até perseguições demoníacas poderiam ligar-se a gerações inteiras de pessoas, por conta de parentes de séculos atrás que erraram ou foram amaldiçoados? É absurdo, logicamente improvável, não existem brechas para invenções do tipo, ou melhor só existem nas cabeças de “víboras”, aludindo o termo que Cristo usou para designar os incautos, escribas e fariseus (Mt 23, 33; Lc 3,7). E "hipócritas", falsários do Evangelho (Mt 23, 27; Mt 23, 29; Mt 15, 7; Mc 7, 6; Lc 12, 56).
Não poso deixar de registrar que existem muitos indivíduos ligados a movimentos leigos, que estão de maneira pouco ortodoxa e muito medonha, introduzindo na Igreja Católica, algum tipo de prática ou exercício de libertação para o indivíduo - que segundo as diversas alegações - supostamente sujeito a tais “maldições hereditárias”. Fazem eles muito mal à Santa Igreja e aos seus membros, mas virá o dia em que os lobos disfarçados entre os eleitos serão repelidos do redil do Senhor.
Esta crença e prática supersticiosa é basicamente oriunda das seitas neo-pentecostais, também designada como o evangelho da maldição ou quebra de maldições, maldições hereditárias, maldição de família e pecado de geração. No Brasil a crença tem origem com a “Igreja” Renascer em Cristo e também na seita de Edir Macedo.
Esta pseudo doutrina que é produto de um moderno misticismo supersticioso, é aparentemente conciliável com a concepção de “carma” ou “karma” no budismo oriental. Para entendermos o que representa esta “aberração doutrinaria” ela corresponde em síntese a:
Um mal invisível, cujo homem não vê, e que pode ter atingido ou atingir qualquer ser humano por intermédio do que eles denominam de “espíritos familiares”, transmitido durante séculos pela linhagem sanguínea e por influência destes mesmos “espíritos” que exercem algum “poder” ou “magia” - como alegam os progenitores desta pseudo doutrina -, com aflições espirituais e corporais sob os que a possuem, até que tal “maldição” seja quebrada através de libertações geralmente produzidas por pastores protestantes.
A expressão “espíritos familiares” que usei acima é utilizada arbitrariamente pelos pregadores de tal crença para justificá-la biblicamente, o termo é retirado de citações do Antigo Testamento, como (Levítico 19,31); na versão bíblica “King James” tradução produzida pela Igreja Anglicana.
Esta expressão é usada para designar “entidades”, “demônios” e “anjos decaídos” que exercem nos adivinhos a atividade da comunicação com os mortos e com os cristãos atuando na condução dos mesmos no âmbito de suas inclinações emocionais, sentimentais, carnais e físicas ao pecado. A palavra “familiares” no plural é utilizada para complementar a denominação destes “espíritos” pelo fato destes, como alegam os pregadores desta crença, terem forte influência e pendurarem em gerações de famílias humanas com seus planos nefastos.
É completamente descabida esta argumentação, a versão “King James” inglesa da Bíblia, não é uma das melhores traduções bíblicas como seguram muitos cristãos, é oriunda de exegetas e tradutores protestantes, alguns deles puritanos. A grande tradução das Escrituras produzida por São Jerônimo nos séculos IV e V, que chamamos de Vulgata Latina, ocupou a reflexão da Igreja por séculos e os textos latinos nada mencionam o termo “espíritos familiares” assim como as versões católicas recentes não aludem. Esta versão é uma clara iniciativa da exegese que se desenvolveu na Inglaterra em contraposição à “Vulgata” católica e também a exegese católica.
Assim forjar textos e procurar traduções cômodas para justificar conceitos e “doutrinas” não traduz princípios básicos de hermenêutica é pura picaretagem moderna. O que foi guardado e transmitido à Igreja nos textos bíblicos antigos que São Jerônimo usou, além é claro da tradicional interpretação do Magistério sobre estes aspectos da teologia, não repercute nem induz qualquer afirmação da existência de “espíritos familiares” quando traduzido para língua latina e nem tampouco para a língua portuguesa.
Pode surgir a pergunta: as Sagradas Escrituras dão embasamento para afirmar que os cristãos podem estar de alguma forma sob o jugo de maldições ancestrais ou qualquer tipo de crença parecida?
A resposta é não. Isto nunca foi parte da pregação apostólica e nem encontra fundamento nos textos bíblicos. Os Padres da Igreja nunca mencionaram tal crença entre os cristãos no decorrer dos cinco primeiros séculos. Aliás os textos bíblicos refutam qualquer possibilidade de “gerações” levarem ou trazerem qualquer peso, mancha ou maldições ou ainda os pecados de seus pais. Vejamos o que diz o profeta Ezequiel:
“Contudo perguntais: Por que não levará o filho a maldade do pai? Porque o filho fez justiça e juízo, guardou todos os meus estatutos, e os praticou, por isso certamente viverá. A alma que pecar, essa morrerá. O filho não levará a maldade do pai, nem o pai levará a maldade do filho. A justiça do justo ficará sobre ele, e a impiedade do ímpio cairá sobre ele”. (Ez 18,19-20).
Há outros textos e citações (Dt 24,16: Jr 31,30: Ez 18, 2-4: Ex 18,4; 20, 5-6: Lv 19, 17) que fazem oposição a qualquer afirmação que alude a esta crença supersticiosa oriunda do neo-pentecostalismo. Não existe compatibilidade desta crendice protestante com a “Sã doutrina”. Boas considerações a respeito do pecado, o perdão de Deus, os sacramentos [exemplo o Sacramento do Batismo que regenera o ser humano e o torna filho de Deus, trazendo-o ao convívio com a graça de Deus, por libertar-nos do pecado original, pelo Batismo somos incorporados em Cristo e na sua única Igreja], julgamento particular e etc. acabam por aniquilar qualquer possibilidade de “maldição hereditária”.
“Deus é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça” (I Jo 1,9), ou seja, ele não leva em conta as “faltas dos pais sobre os filhos” como podemos ler acima. Como então estas supostas faltas ou maldições e até perseguições demoníacas poderiam ligar-se a gerações inteiras de pessoas, por conta de parentes de séculos atrás que erraram ou foram amaldiçoados? É absurdo, logicamente improvável, não existem brechas para invenções do tipo, ou melhor só existem nas cabeças de “víboras”, aludindo o termo que Cristo usou para designar os incautos, escribas e fariseus (Mt 23, 33; Lc 3,7). E "hipócritas", falsários do Evangelho (Mt 23, 27; Mt 23, 29; Mt 15, 7; Mc 7, 6; Lc 12, 56).
Não poso deixar de registrar que existem muitos indivíduos ligados a movimentos leigos, que estão de maneira pouco ortodoxa e muito medonha, introduzindo na Igreja Católica, algum tipo de prática ou exercício de libertação para o indivíduo - que segundo as diversas alegações - supostamente sujeito a tais “maldições hereditárias”. Fazem eles muito mal à Santa Igreja e aos seus membros, mas virá o dia em que os lobos disfarçados entre os eleitos serão repelidos do redil do Senhor.
Immortale Dei
CARTA ENCÍCLICA
IMMORTALE DEI
DO PAPA LEÃO XIII
SOBRE A CONSTITUIÇÃO CRISTÃ
DOS ESTADOS
A todos os Nossos Veneráveis Irmãos,
os Patriarcas, Primazes, Arcebispos e Bispos do orbe católico,
em graça e comunhão com a Sé Apostólica
Veneráveis Irmãos, Saudação e Benção Apostólica
1. A obra imortal do Deus de misericórdia, a Igreja, se bem que em si e por sua natureza tenha por fim a salvação das almas e a felicidade eterna, é entretanto, na própria esfera das coisas humanas, a fonte de tantas e tais vantagens, que as não poderia proporcionar mais numerosas e maiores mesmo quando tivesse sido fundada sobretudo e diretamente em mira a assegurar a felicidade desta vida. Com efeito, onde quer que a Igreja tenha penetrado, imediatamente tem mudado a face das coisas e impregnado os costumes públicos não somente de virtudes até então desconhecidas, mas ainda de uma civilização toda nova. Todos os povos que a têm acolhido se distinguiram pela doçura, pela equidade e pela glória dos empreendimentos.
2. E, todavia, acusação já bem antiga é que a Igreja, dizem, é contrária aos interesses da sociedade civil e incapaz de assegurar as condições de bem-estar e de glória que, com inteira razão e por uma aspiração natural, toda sociedade bem constituída reclama. Desde os primeiros dias da Igreja, como sabemos, os cristãos foram inquietados em conseqüência de injustos preconceitos dessa espécie, e expostos ao ódio e ao ressentimento, a pretexto de serem inimigos do Império. Naquela época, a opinião pública imputava de bom grado ao nome cristão os males que assaltavam a sociedade, ao passo que era Deus, o vingador dos crimes, quem infligia justas penas aos culpados. Essa odiosa calúnia indignou com toda razão o gênio de Santo Agostinho e lhe acusou o estilo. Foi principalmente no seu livro da “Cidade de Deus” que ele pôs em luz a virtude da sabedoria cristã em suas relações com a coisa pública, de tal sorte que ele parece haver menos advogado a causa dos cristãos de seu tempo do que alcançado um triunfo perpétuo sobre tão falsas acusações.
3. Todavia, o pendor funesto para essas queixas e para esses agravos não cessou, e muitos se comprouveram em buscar a regra da vida social fora das doutrinas da Igreja Católica. E, mesmo de então por diante, o “direito novo”, como lhe chamam, e que pretende ser o fruto de uma idade adulta e o produto de uma liberdade progressista, começa a prevalecer e a dominar por toda parte. Mas, a despeito de tantos ensaios, é fato que, para constituir e reger o Estado, nunca se achou sistema preferível àquele que é a florescência espontânea da doutrina evangélica.
Julgamos, pois, ser de suma importância e conforme ao Nosso múnus Apostólico confrontar as novas teorias sociais com a doutrina cristã. Destarte, temos a confiança de que a verdade dissipará, por um só brilho, toda causa de erro e de dúvida, de tal sorte que cada um facilmente poderá ver essas supremas regras de conduta que deve seguir e observar.
4. Não é muito difícil estabelecer que aspecto e que forma terá a sociedade se a filosofia cristã governa a coisa pública. O homem nasceu para viver em sociedade, portanto, não podendo no isolamento nem se proporcionar o que é necessário e útil à vida, nem adquirir a perfeição do espírito e do coração, a Providência o fez para se unir aos seus semelhantes, numa sociedade tanto doméstica quanto civil, única capaz de fornecer o que é preciso à perfeição da existência. Mas, como nenhuma sociedade pode existir sem um chefe supremo e sem que a cada um imprima um mesmo impulso eficaz para um fim comum, daí resulta ser necessária aos homens constituídos em sociedade uma autoridade para regê-los; autoridade que, tanto como a sociedade, procede da natureza e, por conseqüência, tem a Deus por autor.
5. Daí resulta ainda que o poder público só pode vir de Deus. Só Deus, com efeito, é o verdadeiro e soberano Senhor das coisas; todas, quaisquer que sejam, devem necessariamente ser-lhes sujeitas e obedecer-lhe; de tal sorte que todo aquele que tem o direito de mandar não recebe esse direito senão de Deus, Chefe supremo de todos. “Todo poder vem de Deus” (Rom 13,1).
6. Aliás, em si mesma a soberania não está ligada a nenhuma forma política; pode muito bem adaptar-se a esta ou àquela, contanto que seja de fato apta à utilidade e ao bem comum.
7. Mas, seja qual for a forma de governo, todos os chefes de Estado devem absolutamente ter o olhar fito em Deus, soberano Moderador do mundo, e, no cumprimento do seu mandato, a Ele tomar por modelo e regra. Com efeito, assim como na ordem das coisas visíveis Deus criou causas segundas, nas quais se refletem de algum modo a natureza e a ação divina, e que concorrem para conduzir ao fim para que tende este universo, assim também quis Ele que, na sociedade civil, houvesse uma autoridade cujos depositários fossem como que uma imagem do poder que Ele tem sobre o gênero humano, ao mesmo tempo que da sua Providência. Deve, pois, o mando ser justo; é menos o governo de um Senhor do que de um Pai, pois é justíssima a autoridade de Deus sobre os homens e se acha unida a uma bondade paternal. Deve ele, aliás, exercer-se para as vantagens dos cidadãos, pois os que tem autoridade sobre os outros são dela investidos exclusivamente para assegurar o bem público. Sob pretexto algum deve a autoridade civil servir à vantagem de um só ou de alguns, visto haver sido constituída para o bem comum.
8. Se os chefes de Estado se deixarem arrastar a uma dominação injusta, se pecarem por abuso de poder ou por orgulho, se não proverem ao bem do povo, saibam que um dia terão de dar contas a Deus, e essas contas serão tanto mais severas quanto mais santa for a função que eles exercerem e mais elevado o grau da dignidade de que estiverem investidos. “Os poderosos serão poderosamente punidos” (Sab 6, 7).
9. Desta maneira, a supremacia do mando arrastará a homenagem voluntária do respeito dos súditos. De feito, se estes estiverem uma vez bem convencidos de que a autoridade dos soberanos vem de Deus, sentir-se-ão obrigados em justiça a acolher docilmente as ordens dos príncipes e a lhes prestar obediência e fidelidade, por um sentimento semelhante à piedade que os filhos tem para com seus pais. “Seja toda alma sujeita aos poderes mais elevados” (Rom 13,1).
10. Porquanto não é lícito desprezar o poder legítimo, seja qual for a pessoa em que ele resida, mais do que resistir à vontade de Deus; ora, os que lhe resistem correm por si mesmos para sua perda. “Quem resiste ao poder resiste à ordem estabelecida por Deus, e os que lhe resistem atraem a si mesmos a condenação” (Rom 5, 2). Assim, pois, sacudir a obediência e revolucionar a sociedade por meio da sedição é um crime de lesa-majestade, não só humana, mas divina.
11. Sendo a sociedade política fundada sobre estes princípios, evidente é que ela deve, sem falhar, cumprir por um culto público os numerosos e importantes deveres que a unem a Deus. Se a natureza e a razão impõem a cada um a obrigação de honrar a Deus com um culto santo e sagrado, porque nós dependemos do poder dele e porque, saídos dele, a Ele devemos tornar, à mesma lei adstringem a sociedade civil. Realmente, unidos pelos laços de uma sociedade comum, os homens não dependem menos de Deus do que tomados isoladamente; tanto, pelo menos, quanto o indivíduo, deve a sociedade dar graças a Deus, de quem recebe a existência, a conservação e a multidão incontável dos seus bens. É por isso que, do mesmo modo que a ninguém é lícito descurar seus deveres para com Deus, e que o maior de todos os deveres é abraçar de espírito e de coração a religião, não aquela que cada um prefere, mas aquela que Deus prescreveu e que provas certas e indubitáveis estabelecem como a única verdadeira entre todas, assim também as sociedades não podem sem crime comportar-se como se Deus absolutamente não existisse, ou prescindir da religião como estranha e inútil, ou admitir uma indiferentemente, segundo seu beneplácito. Honrando a Divindade, devem elas seguir estritamente as regras e o modo segundo os quais o próprio Deus declarou querer ser honrado.
12. Devem, pois, os chefes de Estado ter por santo o nome de Deus e colocar no número dos seus principais deveres favorecer a religião, protegê-la com a sua benevolência, cobri-la com a autoridade tutelar das leis, e nada estatuírem ou decidirem que seja contrário à integridade dela. E isso devem-no eles aos cidadãos de que são chefes. Todos nós, com efeito, enquanto existimos, somos nascidos e educados em vista de um bem supremo e final ao qual é preciso referir tudo, colocado que está nos céus, além desta frágil e curta existência. Já que disso é que depende a completa e perfeita felicidade dos homens, é do interesse supremo de cada um alcançar esse fim. Como, pois, a sociedade civil foi estabelecida para a utilidade de todos, deve, favorecendo a prosperidade pública, prover ao bem dos cidadãos de modo não somente a não opor qualquer obstáculo, mas a assegurar todas as facilidades possíveis à procura e à aquisição desse bem supremo e imutável ao qual eles próprios aspiram. A primeira de todas consiste em fazer respeitar a santa e inviolável observância da religião, cujos deveres unem o homem a Deus.
13. Quanto a decidir qual religião é a verdadeira, isso não é difícil a quem quiser julgar disso com prudência e sinceridade. Efetivamente, provas numerosíssimas e evidentes, a verdade das profecias, a multidão dos milagres, a prodigiosa celeridade da propagação da fé, mesmo entre os seus inimigos e a despeito dos maiores obstáculos, o testemunho dos mártires e outros argumentos semelhantes, provam claramente que a única religião verdadeira é a que o próprio Jesus Cristo instituiu e deu à sua Igreja a missão de guardar e propagar.
14. Porquanto o Filho único de Deus estabeleceu na terra uma sociedade a que chamamos a Igreja, e encarregou-a de continuar através de todas as idades a missão sublime e divina que Ele mesmo recebera de seu Pai. “Assim como meu Pai me enviou, eu vos envio” (Jo 20, 21). “E eis que eu estou convosco até a consumação dos séculos” (Mt 28, 20). Do mesmo modo, pois, que Jesus Cristo veio à terra a fim de que os homens “tivessem a vida e a tivessem mais abundantemente” (Jo 10, 10), assim também a Igreja propõe-se como fim a salvação eterna das almas; e, nesse intuito, é tal a sua constituição que ela abrange na sua extensão a humanidade inteira e não é circunscrita por limite algum nem de temo, nem de lugar. “Pregai o Evangelho a toda criatura” (Mt 16, 15).
15. A essa imensa multidão de homens o próprio Deus deu chefes com o poder de governá-los. À testa deles propôs um só de quem quis fazer o maior e o maior seguro mestre da verdade, e a quem confiou as chaves do reino dos céus. “Dar-te-ei as chaves do reino dos céus” (Mt 16, 19). “Apascenta meus cordeiros... apascenta minhas ovelhas” (Jo 21, 16-17). “Roguei por ti, a fim de que tua fé não desfaleça” (Lc 22, 32).
16. Se bem que composta de homens como a sociedade civil, essa sociedade da Igreja, quer pelo fim que lhe foi designado, quer pelos meios que lhe servem para atingi-lo, é sobrenatural e espiritual. Distingue-se, pois, e difere da sociedade civil. Além disso, e isto é da maior importância, constitui ela uma sociedade juridicamente perfeita no seu gênero, porque, pela expressa vontade e pela graça do seu Fundador, possui em si e de per si todos os recursos necessários à sua existência e ação. Como o fim a que a Igreja tende é de muito o mais nobre de todos, assim também o seu poder prevalece sobre todos os outros poderes, e de modo algum pode ser inferior ou sujeita ao poder civil. Efetivamente, Jesus Cristo deu plenos poderes aos seus apóstolos na esfera das coisas sagradas, juntando-lhes tanto a faculdade de fazer verdadeiras leis como o duplo poder que dela decorre, de julgar e de punir. “Todo poder me foi dado no céu e na terra; ide pois, ensinai todas as nações...ensinando-as a observar tudo o que eu vos prescrevi” (Mt 28, 18-20). E ainda: “Tende cuidado de punir toda desobediência” (2 Cor 10, 6). Demais: “Serei mais severo em virtude do poder que o Senhor me deu para a edificação e não para a ruína” (2 Cor 13, 10). À Igreja, pois, e não ao Estado, é que pertence guiar os homens para as coisas celestes, e a ela é que Deus deu o mandato de conhecer e de decidir de tudo o que concerne à religião; de ensinar todas as nações, de estender a tão longe quanto possível as fronteiras do nome cristão; em suma, de administrar livremente e a seu inteiro talante os interesses cristãos.
17. Essa autoridade perfeita em si e só de si mesma dependente, de há muito tempo atacada por uma filosofia aduladora dos príncipes, a Igreja nunca cessou de reivindicá-la, nem de exercê-la publicamente. Os primeiros de todos os seus paladinos foram os Apóstolos, que, impedidos pelos príncipes da Sinagoga de difundirem o Evangelho, respondiam com firmeza: “Devemos obedecer a Deus antes que aos homens” (At 5, 29). Foi ela que os Padres da Igreja se aplicaram a defender por sólidas razões quando tiveram ensejo, e que os Pontífices romanos nunca deixaram de reivindicar com uma constância invencível contra os seus agressores.
18. Bem mais, tem ela tido por si, em princípio e de fato, o assentimento dos príncipes e dos chefes de Estados, que, nas suas negociações e transações, enviando e recebendo embaixadas e permutando outros bons ofícios, têm constantemente agido com a Igreja como com uma potência soberana e legítima. Por isto, não é sem uma disposição particular da Providência de Deus que essa autoridade foi munida de um principado civil, como da melhor salvaguarda da sua independência.
19. Deus dividiu, pois, o governo do gênero humano entre dois poderes: o poder eclesiástico e o poder civil; àquele preposto às coisas divinas, este às coisas humanas. Cada uma delas no seu gênero é soberana; cada uma está encerrada em limites perfeitamente determinados, e traçados em conformidade com a sua natureza e com o seu fim especial. Há, pois, como que uma esfera circunscrita em que cada uma exerce a sua ação “iure próprio”. Todavia, exercendo-se a autoridade delas sobre os mesmos súditos, pode suceder que uma só e mesma coisa, posto que a título diferente, mas no entanto uma só e mesma coisa, incida na jurisdição e no juízo de um e de outro poder. Era, pois, digno da Sábia Providência de Deus, que as estabeleceu ambas, traçar-lhes a sua trilha e a sua relação entre si. “OS poderes que existem foram dispostos por Deus” (Rom 13, 1). Se assim não fora, muitas vezes nasceriam causas de funestas contenções e conflitos e muitas vezes o homem deveria hesitar, perplexo, como em face de um duplo caminho, sem saber o que fazer, em conseqüência das ordens contrárias de dois poderes cujo jugo em consciência ele não pode sacudir. Sumamente repugnaria responsabilizar por essa desordem a sabedoria e a bondade de Deus, que, no governo do mundo físico, todavia de ordem bem inferior, temperou tão bem umas pelas outras as forças e as causas naturais, e as fez harmonizar-se de maneira tão admirável, que nenhuma delas molesta as outras, e todas, num conjunto perfeito, conspiram para a finalidade a que tende o universo. Necessário é, pois, que haja entre os dois poderes um sistema de relações bem ordenado, não sem analogia com aquele que, no homem, constitui a união da alma com o corpo. Não se pode fazer uma justa idéia da natureza e da força dessas relações senão considerando, como dissemos, a natureza de cada um dos dois poderes, e levando em conta a excelência e a nobreza dos seus fins, visto que um tem por fim próximo e especial ocupar-se dos interesses terrenos, e o outro proporcionar os bens celestes e eternos.
20. Assim, tudo o que, nas coisas humanas, é sagrado por uma razão qualquer, tudo o que é pertinente à salvação das alas e ao culto de Deus, seja por sua natureza, seja em relação ao seu fim, tudo isso é da alçada da autoridade da Igreja. Quanto às outras coisas que a ordem civil e política abrange, é justo que sejam submetidas à autoridade civil, já que Jesus Cristo mandou dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Tempos ocorrem às vezes, em que prevalece outros modo de assegurar a concórdia e de garantir a paz e a liberdade; é quando os chefes de Estado e os Sumos Pontífices se põem de acordo por um tratado sobre algum ponto particular. Em tais circunstâncias, dá a Igreja provas evidentes da sua caridade materna, levando tão longe quanto possível a indulgência e a condescendência.
21. Tal é, consoante o esboço sumário que havemos traçado, a organização cristã da sociedade civil, e essa teoria não é nem temerária nem arbitrária, mas se deduz dos princípios mais elevados e mais certos, confirmados pela própria razão natural. Essa constituição da sociedade política não tem nada que possa parecer pouco digno ou inconveniente para a dignidade dos príncipes. Longe de tirar o que quer que seja aos direitos da majestade, pelo contrário, torna-os mais estáveis e mais augustos. Muito mais: se olharmos isso mais de perto, reconheceremos nessa constituição uma grande perfeição que falta nos outros sistemas políticos; e ela produziria certamente frutos excelentes e variados se ao menos cada poder ficasse nas suas atribuições e pusesse todos os seus desvelos em cumprir o ofício e a tarefa que lhes foram determinados.
22. Com efeito, na constituição do Estado, tal como a acabamos de expor, o divino e o humano são delimitados numa ordem conveniente; os direitos dos cidadãos são assegurados e colocados sob a proteção das mesmas leis divinas, naturais e humanas; os deveres de cada um são tão sabiamente traçados quão prudentemente salvaguardada lhes é a observância. Todos os homens, nesse encaminhamento incerto e penoso para a cidade eterna, sabem que tem a seu serviço guias seguros para conduzi-los à meta, e auxiliares para atingi-la. Sabem, do mesmo modo, que outros chefes lhes foram dados para obter e conservar a segurança, os bens e as outras vantagens dessa vida.
23. A sociedade doméstica acha a sua solidez necessária na santidade do vínculo conjugal, uno e indissolúvel; os direitos e os deveres dos esposos são regulados com toda a justiça e equidade; a honra devida à mulher é salvaguardada; a autoridade do marido modela-se pela autoridade de Deus, o pátrio poder é temperado pelas atenções devidas à esposa e aos filhos; enfim, está perfeitamente provido para a proteção, para o bem estar e para a educação desses últimos.
24. Na ordem política e civil, as leis têm por fim as bem comuns, ditadas não pela vontade e pelo juízo enganador da multidão, mas pela verdade e pela justiça. A autoridade dos príncipes reveste uma espécie de caráter mais sagrado do que humano, e é contida de maneira a não se afastar da justiça, nem exceder o seu poder. A obediência dos súditos corre parelhas com a honra e a dignidade, porque não é uma sujeição de homem a homem, mas uma submissão à vontade de Deus, que reina por meio de homens. Uma vez reconhecido e aceito isso, daí resulta claramente ser um dever de justiça respeitar a majestade dos príncipes, ser submisso com fidelidade constante ao poder político, evitar as sedições e observar religiosamente a constituição do Estado.
25. Semelhantemente, nessa espécie dos deveres se colocam a caridade mútua, a bondade, a liberalidade. O homem, que é ao mesmo tempo cidadão e cristão, não mais rasgado em dois por obrigações contraditórias. Enfim, os bens consideráveis com que a religião cristã enriquece espontaneamente a própria vida terrena dos indivíduos são adquiridos para a comunidade e para a sociedade civil: donde ressalta a evidência destas palavras: “A sorte do Estado depende do culto que se tributa a Deus: e há entre ambos numerosos laços de parentesco e de estrita amizade” (Sacr. Imp. Ad Cyllirium Alexandr. Et Episcopos metrop. Cfr. Labbeum, Collect. Conc. T. III).
26. Em várias passagens Santo Agostinho, segundo o seu costume, salientou o valor desses bens, mormente quando interpela a Igreja Católica nestes termos: “Tu conduzes e instruis as crianças com ternura, os jovens com força, os velhos com calma, como o comporta a idade não somente do corpo, mas ainda da alma. Sujeitas as mulheres aos maridos por uma casta e fiel obediência, não para cevar a paixão, mas para propagar a espécie e constituir a sociedade da família. Dás autoridade aos maridos sobre as mulheres, não para zombarem do sexo, mas para seguirem as leis de um sincero amor. Subordinas os filhos aos pais por uma espécie de servidão livre e prepões os pais aos filhos por uma espécie de terna autoridade. Unes não só em sociedade, mas numa espécie de fraternidade, os cidadãos aos cidadãos, as nações às nações e os homens entre si pela lembrança dos primeiros pais. Ensinas os reis a velarem sobre os povos, e prescreves aos povos submeter-se aos reis. Ensinas com cuidado a quem é que é devida a honra, a quem a afeição, a quem o respeito, a quem o temor, a quem a consolação, a quem a advertência, a quem o incentivo, a quem a correção, a quem a reprimenda, a quem o castigo; e fazes saber como, se nem todas essas coisas são devidas a todos, a todos é devida a caridade, e a ninguém a injustiça” (De moribus Eccl., cap. XXX, n. 63).
27. Noutro lugar, o mesmo Doutor repreende nestes termos a falsa sabedoria dos políticos filósofos: “Os que dizem que a doutrina de Cristo é contrária ao bem do Estado dêem-nos um exército de soldados tais como os faz a doutrina de Cristo, dêem-nos tais governadores de províncias, tais maridos, tais esposas, tais pais, tais filhos, tais mestres, tais servos, tais reis, tais juízes, tais contribuintes, enfim, e agentes do fisco tais como os quer a doutrina cristã! E então ousem ainda dizer que ela é contrária ao Estado! Muito antes, porém, não hesitem em confessar que ela é uma grande salvaguarda para o Estado quando é seguida” (Epist. 138 (al. 5) ad Marcellinum, cap. II, n. 15).
28. Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados. Nessa época, a influência da sabedoria cristã e a sua virtude divina penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade civil. Então a religião instituída por Jesus Cristo, solidamente estabelecida no grau de dignidade que lhe é devido, em toda parte era florescente, graças ao favor dos príncipes e à proteção legítima dos magistrados. Então o sacerdócio e o império estavam ligados em si por uma feliz concórdia e pela permuta amistosa de bons ofícios. Organizada assim, a sociedade civil deu frutos superiores a toda expectativa, frutos cuja memória subsiste e subsistirá, consignada como está em inúmeros documentos que artifício algum dos adversários poderá corromper ou obscurecer.
29. Se a Europa cristã domou as nações bárbaras e as fez passar da ferocidade para a mansidão, da superstição para a verdade; se repeliu vitoriosamente as invasões muçulmanas, se guardou a supremacia da civilização, e se, em tudo que faz honra à humanidade, constantemente e em toda parte se mostrou guia e mestra; se brindou os povos com a verdadeira liberdade sob essas diversas formas, se sapientissimamente fundou uma multidão de obras para o alívio das misérias; é fora de toda dúvida que, assim, ela é grandemente devedora à religião, sob cuja inspiração e com cujo auxílio empreendeu e realizou tão grandes coisas.
30. Todos esses bens durariam ainda se o acordo dos dois poderes houvesse perseverado, e havia razão para esperar outros ainda maiores, se a autoridade, se o ensino, se os conselhos da Igreja tivesses encontrado uma docilidade mais fiel e mais constante. Por quanto dever-se-ia ter como lei imprescritível aquilo que Yves de Chartres escreveu ao Papa Pascoal II: “Quando o mundo é bem governado, a Igreja é florescente e fecunda. Mas, quando a discórdia se interpõe entre eles, não somente as pequenas coisas não crescem, mas as próprias grandes deperecem miseravelmente” (Epist. 238).
31. Mas esse pernicioso e deplorável gosto de novidades que o século XVI viu nascer, depois de primeiro haver transtornado a religião cristã, em breve, por um declive natural, passou à filosofia, e da filosofia a todos os graus da sociedade civil. É a essa fonte que cumpre fazer remontar esses princípios modernos de liberdade desenfreada sonhados e promulgados por entre as grandes perturbações do século último, como os princípios e fundamentos de um “direito novo”, até então desconhecidos e sobre mais de um ponto em desacordo não somente com o direito cristão, mas com o direito natural. Eis aqui o primeiro de todos esses princípios: todos os homens, já que são da mesma raça e da mesma natureza, são semelhantes, e, “ipso facto”, iguais entre si na prática da vida; cada um depende tão bem só de si, que de modo algum está sujeito à autoridade de outrem: pode com toda liberdade pensar sobre qualquer coisa o que quiser, fazer o que lhe aprouver; ninguém tem o direito de mandar aos outros. Numa sociedade fundada sobre estes princípios, a autoridade pública é apenas a vontade do povo, o qual, só de si mesmo dependendo, é também o único a mandar a si. Escolhe os seus mandatários, mas de tal sorte que lhes delega menos o direito do que a função do poder, para exercê-la em seu nome. A soberania de Deus é passada em silencia, exatamente como se Deus não existisse, ou não se ocupasse em nada com a sociedade do gênero humano; ou então como se os homens, quer em particular, quer em sociedade, não devessem nada a Deus, ou como se pudesse imaginar-se um poder qualquer cuja causa, força, autoridade não residisse inteira no próprio Deus.
32. Destarte, como se vê, o Estado não outra coisa mais senão a multidão soberana e que se governa por si mesma e desde que o povo é considerado a fonte de todo o direito e de todo o poder, segue-se que o Estado não se julga jungido a nenhuma obrigação para com Deus, não professa oficialmente nenhuma religião, não é obrigado a perquirir qual é a única verdadeira entre todas, nem a preferir uma às outras, nem a favorecer uma principalmente; mas a todas deve atribuir a igualdade em direito, com este fim apenas, de impedi-las de perturbarem a ordem pública. Por conseguinte, cada um será livre de se fazer juiz de qualquer questão religiosa, cada um será livre de abraçar a religião que prefere ou de não seguir nenhuma se nenhuma lhe agradar. Daí decorrem necessariamente a liberdade sem freio de toda consciência, a liberdade absoluta de adorar ou de não adorar a Deus, a licença sem limites de pensar e de publicar os próprios pensamentos.
33. Dado que o Estado repousa sobre esses princípios, hoje em grande favor, fácil é ver a que lugar se relega injustamente a Igreja. Com efeito, onde quer que a prática está de acordo com tais doutrinas, a religião católica é posta, no Estado, em pé de igualdade, ou mesmo de inferioridade, com sociedades que lhes são estranhas. Não se tem em nenhuma conta as leis eclesiásticas; a Igreja, que recebeu de Jesus Cristo ordem e missão de ensinar todas as nações, vê-se interdizer toda ingerência na instrução pública. Nas matérias que são de direito misto, os chefes de Estado expedem por si mesmos decretos arbitrários, e sobre esses pontos ostentam um soberbo desprezo pelas santas leis da Igreja.
34. Assim, fazem depender da sua jurisdição os casamentos dos cristãos; decretam leis sobre o vínculo conjugal, sua unidade, sua estabilidade; deitam mão aos bens dos clérigos e negam à Igreja o direito de possuir. Em suma, tratam a Igreja como se ela não tivesse nem o caráter nem os direitos de uma sociedade perfeita, e fosse uma mera associação semelhante às outras que existem no Estado. Por isso, tudo o que ela tem de direitos, de poder legítimo de ação, fazem-no eles depender da concessão e do favor dos governantes.
35. Nos Estados em que a legislação civil deixa à Igreja a sua autonomia, e onde uma concordata pública interveio entre os dois poderes, a princípio grita-se que é preciso separar os negócios da Igreja dos negócios do Estado, e isso no intuito de poder agir impunemente contra a fé jurada e fazer-se árbitro de tudo afastando todos os obstáculos. Mas, como a Igreja não pode sofrê-lo pacientemente, pois seria para ela desertar os maiores e os mais sagrados dos deveres, e como reclama absolutamente o cumprimento religioso da fé que lhe foi jurada, muitas vezes nascem entre o poder espiritual e o poder civil conflitos, cujo desfecho quase inevitável é sujeitar aquele que é menos provido de meios humanos ao que é mais provido. Assim, nessa situação política que muitos favorecem hoje em dia, há uma tendência das idéias e das vontades para expulsar inteiramente a Igreja da sociedade, ou para mantê-la sujeita e acorrentada ao Estado. A maior parte das medidas tomadas pelos governos inspiram-se nesse desígnio. As leis, a administração pública, a educação sem religião, a espoliação e a destruição das Ordens religiosas, a supressão do poder temporal dos Pontífices romanos, tudo tende a este fim: ferir no coração as instituições cristãos, reduzir a nada a liberdade da Igreja Católica, e ao nada os seus demais direitos.
36. A simples razão natural demonstra o quanto se afasta da verdade esta maneira de entender o governo civil. O testemunho dela, com efeito, basta para estabelecer que tudo o que há de autoridade entre os homens procede de Deus, como de uma fonte augusta e suprema. Quanto à soberania do povo, que, sem levar em nenhuma conta a Deus, se diz residir por direito natural no povo, se ela é eminentemente própria para lisonjear e inflamar uma multidão de paixões, não assenta em nenhum fundamento sólido e não pode ter força bastante para garantir a segurança pública e a manutenção tranqüila da ordem. De feito, sob o império dessas doutrinas, os princípios cederam a ponto de, para muitos, ser uma lei imprescritível em direito político poder legitimamente levantar sedições. Porquanto prevalece a opinião de que os chefes do governo são meros delegados encarregados de executar a vontade do povo: donde esta conseqüência necessária: que tudo pode igualmente mudar ao sabor do povo, e que sempre há a temer distúrbios.
37. Relativamente à religião, pensar que é indiferente tenha ela formas disparatadas e contrárias equivale simplesmente a não querer nem escolher nem seguir qualquer delas. É o ateísmo menos o nome. Efetivamente, quem quer que creia em Deus, se for conseqüentemente e não quer cair no absurdo, deve necessariamente admitir diferença, disparidade e oposição, mesmo sobre os pontos mais importantes, não podem ser todos igualmente bons, igualmente agradáveis a Deus.
38. Assim, também, a liberdade de pensar e publicar os próprios pensamentos, subtraída a toda regra, não é por si um bem de que a sociedade tenha que se felicitar; mas é antes a fonte e a origem de muitos males. A liberdade, esse elemento de perfeição para o homem, deve aplicar-se ao que é verdadeiro e ao que é bom. Ora, a essência do bem e da verdade não pode mudar ao sabor do homem, mas persiste sempre a mesma, e, não menos do que a natureza das coisas, é imutável. Se a inteligência adere as opiniões falsas, se a vontade escolhe o mal e a ele se apega, nem uma nem outra atinge a sua perfeição, ambas decaem da sua dignidade nativa e se corrompem. Não é, pois, permitido dar a lume e expor aos olhos dos homens o que é contrário à virtude e à verdade, e muito menos ainda colocar essa licença sob a tutela e a proteção das leis. Não há senão um caminho para chegar ao céu, para o qual todos nós tendemos: é uma boa vida. O Estado afasta-se, pois, das regras e prescrições da natureza se favorece a licença das opiniões e das ações culposas ao ponto de se poderem impunemente desviar os espíritos da verdade e as almas da virtude.
39. Quanto à Igreja, que o próprio Deus estabeleceu, excluí-la da vida pública, das leis, da educação da juventude, da sociedade doméstica, é m grande e pernicioso erro. Uma sociedade sem religião não pode ser bem regulada; e, mais talvez do que fora mister, já se vê o que vale em si e em suas conseqüências essa pretensa moral civil.
40. A verdadeira mestra da juventude e a guardiã dos costumes é a Igreja de Cristo. É ela quem conserva na sua integridade os princípios de onde emanam os deveres, e quem sugerindo os mais nobres motivos de vem viver, ordena não somente fugir às más ações, mas domar os movimentos da alma contrários à razão, ainda quando não se traduzem em ato.
41. Pretender sujeitar a Igreja ao poder civil no exercício do seu ministério é a um tempo uma grande injustiça e uma grande temeridade. Por essa mesma razão, perturba-se a ordem, pois se dá o passo às coisas naturais sobre as coisas sobrenaturais; estanca-se, ou, certamente, se diminui muito o afluxo dos bens com que, se estivesse sem peias, a Igreja cumularia a sociedade; e, demais, abre-se a voz a ódios e a lutas cuja grande e funesta influência sobre ambas as sociedades tem sido demonstrado por experiências mais do que freqüentes.
42. Essas doutrinas, que a razão humana reprova e têm uma influência tão considerável sobre a marcha das coisas públicas, os Pontífices romanos, Nossos predecessores, na plena consciência daquilo que deles reclamava o múnus apostólico, jamais sofreram fossem impunemente emitidas. Assim foi que, na sua Carta Encíclica “Mirari vos”, de 15 de agosto de 1832, Gregório XVI, com grande autoridade doutrinal, repeliu o que se avançava desde então, insto é, que em matéria de religião não há escolha a fazer: que cada um depende apenas da própria consciência e pode, além disso, publicar o que pensa e tramar revoluções no Estado. A respeito da separação da Igreja do Estado, exprime-se nestes termos esse Pontífice: “Não podemos esperar para a Igreja e para o Estado resultados melhores das tendências dos que pretendem separar a Igreja do Estado e romper a concórdia mútua entre o sacerdócio e o império. É que, com efeito, os fautores de uma liberdade desenfreada temem essa concórdia, que sempre foi tão propícia e salutar aos interesses religiosos e civis”. Da mesma maneira, Pio IX, cada vez que se apresentou ensejo, condenou as falsas opiniões mais em voga, e que, em tal dilúvio de erros, os católicos tivessem uma direção segura.
43. Dessas decisões dos Sumos Pontífices, cumpre absolutamente admitir que a origem do poder público deve atribuir-se a Deus, e não à multidão; que o direito à rebelião repugna a razão; que não fazer nenhum caso dos deveres da religião, ou tratar da mesma maneira as diferentes religiões, não é permitido nem aos indivíduos nem às sociedades; que a liberdade ilimitada de pensar e d emitir em público os próprios pensamentos de modo algum deve ser colocada entre os direitos dos cidadãos, nem entre as coisas dignas de favor e de proteção.
44. Do mesmo modo, cumpre admitir que, não menos que o Estado, a Igreja, por sua natureza e de pleno direito, é uma sociedade perfeita; que os depositários do poder não devem pretender escravizar e subjugar a Igreja, nem lhe diminuir a liberdade de ação na sua esfera, nem lhe tirar seja qual for dos direitos que lhe foram conferidos por Jesus Cristo. Nas questões do direito misto, é plenamente conforme à natureza, bem como aos desígnios de Deus, não separar um poder do outros, e ainda menos pô-los em luta, mas sim estabelecer entre eles essa concórdia que está em harmonia com os atributos especiais por cada sociedade recebidos da sua natureza.
45. Tais são as regras traçadas pela Igreja Católica relativamente à constituição e ao governo dos Estados. Esses princípios e esses decretos, se se quiser julgar somente deles, não reprovam em si nenhuma das diferentes formas de governo, visto que estas nada têm que repugne à doutrina católica, e, se forem aplicadas com sabedoria e justiça, todos podem garantir a prosperidade pública. Bem mais, não se reprova em si que o povo tenha sua parte maior ou menor no governo; isto até, em certos tempos e sob certas leis, pode tornar-se não somente uma vantagem, mas um dever para os cidadãos. Demais, não há para ninguém justo motivo de acusar a Igreja de ser inimiga quer de uma justa tolerância, quer de uma são e legítima liberdade.
46. Efetivamente, se a Igreja julga não ser lícito por os diversos cultos no mesmo pé legal que a verdadeira religião, nem por isso condena os chefes de Estado que, em vista de um bem a alcançar ou de um mal a impedir, toleram na prática que esses diversos cultos tenham cada um seu lugar no Estado.
47. É, aliás, costume da Igreja velar com o maior cuidado por que ninguém seja forçado a abraçar a fé católica contra sua vontade, porquanto, como observa sabiamente Santo Agostinho, “o homem não pode crer senão querendo” (tract. XXVI in Ioan., n. 2).
48. Pela mesma razão, não pode a Igreja aprovar uma liberdade que gera o desgosto das mais santas leis de Deus e sacode a obediência devida à autoridade legítima. Isso é mais uma licença do que uma liberdade, e Santo Agostinho lhe chama mui justamente “uma liberdade de perdição” (Epist. CV, ad Donatistas, cap. II, n. 9) e o Apóstolo S. Pedro “um véu de maldade” (1 Ped 2, 16). Muito mais: sendo oposta à razão, essa pretensa liberdade é uma verdadeira escravidão. “Aquele que comete o pecado é escravo do pecado” (Jo 8, 34).
49. Pelo contrário, liberdade verdadeira e desejável é a que, na ordem individual, não deixa o homem escravo nem dos erros, nem das paixões, que são os seus piores tiranos; e na ordem pública traça regras sábias aos cidadãos, facilita largamente o incremento do bem-estar e preserva do arbítrio de outrem a coisa pública. Essa liberdade honesta e digna do homem, a Igreja a aprova ao mais alto ponto, e, para garantir aos povos o firme e integral gozo dela, nunca cessou de lutar e de combater.
50. Sim, na verdade, tudo o que pode haver de salutar para o bem geral no Estado; tudo o que é útil para proteger o povo contra a licença dos príncipes que lhe não provêem ao bem; tudo o que impede as usurpações injustas do Estado sobre a comuna ou sobre a família; tudo o que interessa à honra, à personalidade humana e à salvaguarda dos direitos iguais de cada um; de tudo isso a Igreja Católica sempre tomou quer a iniciativa, quer o patrocínio, quer a proteção, como atestam os monumentos das idades precedentes. Sempre coerente consigo mesma, se, de uma parte, dela repele uma liberdade imoderada que, para os indivíduos e para os povos, degenera em licença ou em escravidão, de outra parte abraça com todo o gosto os progressos que todo dia nascem, se verdadeiramente contribuem para a prosperidade desta vida, que é como um encaminhamento para a vida futura e para sempre duradoura. Assim, pois, dizer que a Igreja vê com maus olhos as formas mais modernas dos sistemas políticos e repele em bloco todas as descobertas do gênio contemporâneo, é uma calúnia vã e sem fundamento. Sem dúvida, ela repudia as opiniões malsãs, reprova a inclinação perniciosa para a revolta, e mui particularmente essas predisposições dos espíritos em que já reponta a vontade de se afastar de Deus; mas, como tudo o que é verdadeiro não pode proceder senão de Deus, em tudo o que as investigações do espírito humano descobrem de verdade, a Igreja reconhece como que um vestígio da inteligência divina; e como não há nenhuma verdade natural que infirme a fé nas verdades divinamente reveladas, como há muitas que a confirmam, e como todo descobrimento da verdade pode levar a conhecer e a louvar ao próprio Deus, a Igreja acolherá sempre de bom grado e com alegria tudo o que contribuir para alargar a esfera das ciências; e, assim como sempre o fez para com as outras ciências, favorecerá e incentivará aquelas que tem por objeto o estudo da natureza. Nesse gênero de estudos, a Igreja não se opõe a nenhuma descoberta do espírito; vê sem desprezar tantas investigações que tem por fim o prazer e o bem-estar; e, mesmo, inimiga nata da inércia e da preguiça, deseja grandemente que o exercício e a cultura façam o gênio do homem dar frutos abundantes. Ela tem incentivos para toda espécie de artes e indústrias, e, dirigindo por sua virtude todas essas investigações para um fim honesto e salutar, aplica-se a impedir que a inteligência e a indústria do homem não o desviem de Deus e dos bens celestes.
51. Esta maneira de agir, todavia tão racional e tão sábia, é que é desacreditada nestes tempos em que os Estados não somente recusam conformar-se aos princípios da filosofia cristã, mas parecem querer afastar-se dela cada dia mais. Não obstante, sendo próprio da luz irradiar por si mesma ao longe e penetrar aos poucos os espíritos dos homens, movidos como somos pela consciência das altíssimas e santíssimas obrigações da missão apostólica de que estamos investidos para com todos os povos, livremente proclamamos, consoante o Nosso dever, a verdade, não porque não levemos em nenhuma conta os tempos, ou julgamos dever proscrever os honestos e úteis progressos da Nossa idade; mas porque quereríamos ver os negócios públicos seguirem caminhos menos perigosos e repousarem em fundamentos mais sólidos, e isso deixando intacta a liberdade legítima dos povos; essa liberdade de que a verdade é entre os homens a fonte e a melhor salvaguarda: “A verdade vos libertará” (Jo 7, 32).
52. Se, pois, nessas conjunturas difíceis os católicos Nos escutarem, como é seu dever, saberão exatamente quais são os deveres de cada um na “teoria” como na “prática”. Na teoria, primeiro, é necessário ater-se com decisão inabalável a tudo o que os Pontífices romanos têm ensinado ou ensinarem, e, todas as vezes que as circunstâncias o exigirem, fazer disso profissão pública. Particularmente no que diz respeito às “liberdades modernas”, como lhes chamam, deve cada um ater-se ao julgamento da Sé Apostólica e conformar-se com suas decisões. Cumpre resguardar-se de se deixar enganar pela honestidade especiosa dessas liberdades, e lembrar-se de que fontes elas emanam e por que espírito se propagam e se sustentam. A experiência já tem feito suficientemente conhecer os resultados que elas têm tido para a sociedade, e o quanto os frutos que elas têm dado inspiram com toda razão pesares aos homens funestos e prudentes. Se existe algures, ou pelo pensamento se imaginar um Estado que persiga disfaçada e tiranicamente o nome cristão, e se o confrontarmos com o gênero do governo moderno de que falamos, este último poderá parecer mais tolerável. Certamente, os princípios em que este último se baseia são de tal natureza, como dissemos, que em si mesmo por ninguém devem ser aprovados.
53. Na prática, a ação pode exercer-se já nos negócios privados e domésticos, já nos negócios públicos. Na ordem privada, o primeiro dever de cada um é de conformar exatamente a própria vida e os próprios costumes aos preceitos do Evangelho, e de não recuar ante o que a virtude cristã impõe de um pouco difícil de sofrer e aturar. Todos devem, além disso, amar a Igreja como sua Mãe comum, obedecer às suas leis, prover à sua honra, salvaguardar-lhe os direitos, e tomar cuidado de que aqueles sobre os quais exercem alguma autoridade a respeitem e a amem com a mesma piedade filial.
54. À salvação pública importa ainda que os católicos emprestem sensatamente o seu concurso à administração dos negócios municipais e se apliquem sobretudo a fazer com que a autoridade pública atenda à educação religiosa e moral da juventude, como convém a cristãos: daí depende sobretudo a salvação da sociedade. Será geralmente útil e louvável que os católicos estendam a sua ação além dos limites desse campo demasiado restrito, e se cheguem aos grandes cargos do Estado. “Geralmente”, dizemos, porque aqui os Nossos conselhos se dirigem a todas as nações. Aliás, pode suceder algures que, por motivos os mais graves e os mais justos, absolutamente não seja conveniente participar dos negócios públicos seria tão repreensível como não trazer à utilidade comum nem desvelo nem concurso: tanto mais quanto, em virtude mesmo da doutrina que professam, os católicos são obrigados a cumprir esse dever com toda integridade e consciência. Aliás. Abstendo-se eles, as rédeas do governo passarão sem contestação às mãos daqueles cujas opiniões certamente não oferecem grande esperança de salvação para o Estado.
55. Seria isso, ademais, pernicioso aos interesses cristãos, porque os inimigos da Igreja teriam todo o poder e os defensores dela, nenhum. Evidentemente é, pois, que os católicos têm justos motivos para participar da vida política; porquanto o fazem e o devem fazer não para aprovar aquilo que pode haver de censurável presentemente nas instituições políticas; porquanto o fazem e o devem fazer não para aprovar aquilo que pode haver de censurável presentemente nas instituições políticas, mas para tirar dessas próprias instituições, tanto quanto possível, o bem público sincero e verdadeiro, propondo-se infundir em todas as veias do Estado, como uma seiva e um sangue reparador, a virtude e a influência da religião católica.
56. Assim foi nas primeiras idades da Igreja. Nada estava mais distanciado das máximas e costumes do Evangelho do que as máximas e costumes dos pagãos; viam-se, todavia, os cristãos, incorruptíveis em plena superstição e sempre semelhantes a si mesmos, entrarem corajosamente em toda parte onde se abria um acesso. De uma fidelidade exemplar para com os príncipes e de uma obediência às leis do Estado tão perfeita como lhes era lícito, eles lançavam de toda parte um maravilhoso brilho de santidade, esforçavam-se por ser úteis a seus irmãos e por atrair os outros a seguirem Nosso Senhor, dispostos entretanto a ceder o lugar e a morrer corajosamente se não pudessem, sem vulnerar a sua consciência, conservar as honras as magistraturas e os cargos militares. Desse modo, introduziram eles rapidamente as instituições cristãs não somente nos lares domésticos, mas nos acampamentos, na cúria, e até no palácio imperial. “Somos apenas de ontem, e já enchemos tudo o que é vosso, vossas cidades, vossas ilhas, vossas fortalezas, vossos municípios, vossos conciliábulos, vossos próprios acampamentos, as tribos, as decúrias, o palácio, o senado, o fórum” (Tertull., Apol., n. 37). Por isso, quando foi permitido professar publicamente o Evangelho, a fé cristã apareceu em grande número de cidades não em vagidos ainda, porém forte e já cheia de vigor.
57. Nos tempos em que estamos, há toda razão para renovar esses exemplos de nossos pais. Antes de tudo, é necessário que todos os católicos dignos deste nome se determinem a ser e mostrar-se filhos dedicados da Igreja; que repilam sem hesitar tudo o que seja incompatível com essa profissão; que se sirvam das instituições públicas, tanto quanto o puderem fazer em consciência, em proveito da verdade e da justiça; que trabalhem para que a liberdade não exceda o limite traçado pela lei natural e divina; que tomem a peito reconduzir toda constituição pública a essa forma cristã que havemos proposto para modelo.
58. Não é coisa fácil determinar um modo único e certo para realizar esses dados, visto dever ele convir a lugares e a tempos mui dispares entre si. Não obstante, cumpre antes de tudo conservar a concórdia das vontades e tender à uniformidade da ação. Obter-se-á seguramente esse duplo resultado se cada um tomar como regra de conduta as prescrições da Sé Apostólica e a obediência aos bispos, que “o Espírito Santo estabeleceu para reger a Igreja de Deus” (At 20, 28). A defesa do nome cristão reclama imperiosamente que o assentimento às doutrinas ensinadas pela Igreja seja da parte de todos unânime e constante, e, por este lado, cumpre resguardar-se ou de estar, no que quer que seja, de conivência com as falsas opiniões, ou de combatê-las mais molemente do que comporta a verdade. Quanto às coisas sobre que se pode discutir livremente, será lícito discutir com moderação e no intuito de procurar a verdade, mas pondo de lado as suspeitas injustas e as acusações recíprocas.
59. Para este fim, no medo de que a união dos espíritos seja destruída por acusações temerárias, eis aqui o que todos devem admitir: a profissão íntegra da fé católica absolutamente incompatível com as opiniões que se aproximam do “racionalismo” e do “naturalismo”, e cujo capital é destruir completamente as instituições cristãs e estabelecer na sociedade a autoridade do homem em lugar da de Deus. Não é, tão pouco, permitido ter duas maneira de proceder: uma em particular e outra em público, de modo a respeitar a autoridade da Igreja ma vida privada e a rejeitá-la na vida pública; isso seria aliar juntos o bem e o mal e pôr o homem em luta consigo mesmo, quando, ao contrário, deve ele sempre ser coerente, e em nenhum gênero de vida ou de negócios afastar-se da virtude cristã. Mas se se tratar de questões puramente políticas, do melhor gênero de governo, de tal ou tal sistema de administração civil, divergências honestas são lícitas. A justiça não sobre, pois, que se criminem homens cuja piedade é aliás conhecida, e cuja mente é inteiramente disposta a aceitar docilmente as decisões da Santa Sé, por serem de opinião diferente sobre os pontos em questão. Injustiça muito maior ainda seria suspeitar-lhes a fé ou acusá-los de traí-la, como mais de uma vez o havemos lamentado. Seja esta lei uma imprescritível para os escritores e sobretudo para os jornalistas.
60. Numa luta em que os maiores interesses estão em jogo, não se deve deixar lugar algum às dissensões intestinas ou ao espírito de partido; mas, num acordo unânime dos espíritos e dos corações, todos devem perseguir o escopo comum, que é salvar os grandes interesses da religião e da sociedade. Se, pois, no passado, tiveram lugar alguns dissentimentos, cumpre sepultá-los num sincero esquecimento; se alguma temeridade, se alguma injustiça foi cometida, seja qual for o culpado, cumpre tudo reparar por uma caridade recíproca tudo redimir por um comum assalto de deferências para com a Santa Sé. Deste modo, obterão os católicos duas vantagens importantíssimas: a de ajudarem a Igreja a conservar e a propagar a doutrina cristã, e a de prestarem o serviço mais assinalado à sociedade, cuja salvação está fortemente comprometida pelas más doutrinas e pelas más paixões.
61. É isso, Veneráveis Irmãos, o que julgamos dever ensinar a todas as nações do orbe católico sobre a constituição cristã dos Estados e os deveres privados dos súditos. Resta-Nos implorar por ardentes preces o socorro celeste, e suplicar a Deus fazer Ele próprio atingirem o termo desejado todos os Nossos desejos e todos os Nossos esforços para a sua glória e para a salvação do gênero humano, Ele que é só quem pode iluminar os espíritos e tocar os corações dos homens. Como penhor das bênçãos divinas e em testemunho da Nossa paternal benevolência, damo-Vos na caridade do Senhor, Veneráveis Irmãos, a Vós bem como ao clero e ao povo inteiro confiado à Vossa guarda e à Vossa vigilância, a Benção Apostólica.
Dado em Roma, em S. Pedro, a 1° de novembro de 1885, oitavo ano do Nosso Pontificado.
IMMORTALE DEI
DO PAPA LEÃO XIII
SOBRE A CONSTITUIÇÃO CRISTÃ
DOS ESTADOS
A todos os Nossos Veneráveis Irmãos,
os Patriarcas, Primazes, Arcebispos e Bispos do orbe católico,
em graça e comunhão com a Sé Apostólica
Veneráveis Irmãos, Saudação e Benção Apostólica
1. A obra imortal do Deus de misericórdia, a Igreja, se bem que em si e por sua natureza tenha por fim a salvação das almas e a felicidade eterna, é entretanto, na própria esfera das coisas humanas, a fonte de tantas e tais vantagens, que as não poderia proporcionar mais numerosas e maiores mesmo quando tivesse sido fundada sobretudo e diretamente em mira a assegurar a felicidade desta vida. Com efeito, onde quer que a Igreja tenha penetrado, imediatamente tem mudado a face das coisas e impregnado os costumes públicos não somente de virtudes até então desconhecidas, mas ainda de uma civilização toda nova. Todos os povos que a têm acolhido se distinguiram pela doçura, pela equidade e pela glória dos empreendimentos.
2. E, todavia, acusação já bem antiga é que a Igreja, dizem, é contrária aos interesses da sociedade civil e incapaz de assegurar as condições de bem-estar e de glória que, com inteira razão e por uma aspiração natural, toda sociedade bem constituída reclama. Desde os primeiros dias da Igreja, como sabemos, os cristãos foram inquietados em conseqüência de injustos preconceitos dessa espécie, e expostos ao ódio e ao ressentimento, a pretexto de serem inimigos do Império. Naquela época, a opinião pública imputava de bom grado ao nome cristão os males que assaltavam a sociedade, ao passo que era Deus, o vingador dos crimes, quem infligia justas penas aos culpados. Essa odiosa calúnia indignou com toda razão o gênio de Santo Agostinho e lhe acusou o estilo. Foi principalmente no seu livro da “Cidade de Deus” que ele pôs em luz a virtude da sabedoria cristã em suas relações com a coisa pública, de tal sorte que ele parece haver menos advogado a causa dos cristãos de seu tempo do que alcançado um triunfo perpétuo sobre tão falsas acusações.
3. Todavia, o pendor funesto para essas queixas e para esses agravos não cessou, e muitos se comprouveram em buscar a regra da vida social fora das doutrinas da Igreja Católica. E, mesmo de então por diante, o “direito novo”, como lhe chamam, e que pretende ser o fruto de uma idade adulta e o produto de uma liberdade progressista, começa a prevalecer e a dominar por toda parte. Mas, a despeito de tantos ensaios, é fato que, para constituir e reger o Estado, nunca se achou sistema preferível àquele que é a florescência espontânea da doutrina evangélica.
Julgamos, pois, ser de suma importância e conforme ao Nosso múnus Apostólico confrontar as novas teorias sociais com a doutrina cristã. Destarte, temos a confiança de que a verdade dissipará, por um só brilho, toda causa de erro e de dúvida, de tal sorte que cada um facilmente poderá ver essas supremas regras de conduta que deve seguir e observar.
4. Não é muito difícil estabelecer que aspecto e que forma terá a sociedade se a filosofia cristã governa a coisa pública. O homem nasceu para viver em sociedade, portanto, não podendo no isolamento nem se proporcionar o que é necessário e útil à vida, nem adquirir a perfeição do espírito e do coração, a Providência o fez para se unir aos seus semelhantes, numa sociedade tanto doméstica quanto civil, única capaz de fornecer o que é preciso à perfeição da existência. Mas, como nenhuma sociedade pode existir sem um chefe supremo e sem que a cada um imprima um mesmo impulso eficaz para um fim comum, daí resulta ser necessária aos homens constituídos em sociedade uma autoridade para regê-los; autoridade que, tanto como a sociedade, procede da natureza e, por conseqüência, tem a Deus por autor.
5. Daí resulta ainda que o poder público só pode vir de Deus. Só Deus, com efeito, é o verdadeiro e soberano Senhor das coisas; todas, quaisquer que sejam, devem necessariamente ser-lhes sujeitas e obedecer-lhe; de tal sorte que todo aquele que tem o direito de mandar não recebe esse direito senão de Deus, Chefe supremo de todos. “Todo poder vem de Deus” (Rom 13,1).
6. Aliás, em si mesma a soberania não está ligada a nenhuma forma política; pode muito bem adaptar-se a esta ou àquela, contanto que seja de fato apta à utilidade e ao bem comum.
7. Mas, seja qual for a forma de governo, todos os chefes de Estado devem absolutamente ter o olhar fito em Deus, soberano Moderador do mundo, e, no cumprimento do seu mandato, a Ele tomar por modelo e regra. Com efeito, assim como na ordem das coisas visíveis Deus criou causas segundas, nas quais se refletem de algum modo a natureza e a ação divina, e que concorrem para conduzir ao fim para que tende este universo, assim também quis Ele que, na sociedade civil, houvesse uma autoridade cujos depositários fossem como que uma imagem do poder que Ele tem sobre o gênero humano, ao mesmo tempo que da sua Providência. Deve, pois, o mando ser justo; é menos o governo de um Senhor do que de um Pai, pois é justíssima a autoridade de Deus sobre os homens e se acha unida a uma bondade paternal. Deve ele, aliás, exercer-se para as vantagens dos cidadãos, pois os que tem autoridade sobre os outros são dela investidos exclusivamente para assegurar o bem público. Sob pretexto algum deve a autoridade civil servir à vantagem de um só ou de alguns, visto haver sido constituída para o bem comum.
8. Se os chefes de Estado se deixarem arrastar a uma dominação injusta, se pecarem por abuso de poder ou por orgulho, se não proverem ao bem do povo, saibam que um dia terão de dar contas a Deus, e essas contas serão tanto mais severas quanto mais santa for a função que eles exercerem e mais elevado o grau da dignidade de que estiverem investidos. “Os poderosos serão poderosamente punidos” (Sab 6, 7).
9. Desta maneira, a supremacia do mando arrastará a homenagem voluntária do respeito dos súditos. De feito, se estes estiverem uma vez bem convencidos de que a autoridade dos soberanos vem de Deus, sentir-se-ão obrigados em justiça a acolher docilmente as ordens dos príncipes e a lhes prestar obediência e fidelidade, por um sentimento semelhante à piedade que os filhos tem para com seus pais. “Seja toda alma sujeita aos poderes mais elevados” (Rom 13,1).
10. Porquanto não é lícito desprezar o poder legítimo, seja qual for a pessoa em que ele resida, mais do que resistir à vontade de Deus; ora, os que lhe resistem correm por si mesmos para sua perda. “Quem resiste ao poder resiste à ordem estabelecida por Deus, e os que lhe resistem atraem a si mesmos a condenação” (Rom 5, 2). Assim, pois, sacudir a obediência e revolucionar a sociedade por meio da sedição é um crime de lesa-majestade, não só humana, mas divina.
11. Sendo a sociedade política fundada sobre estes princípios, evidente é que ela deve, sem falhar, cumprir por um culto público os numerosos e importantes deveres que a unem a Deus. Se a natureza e a razão impõem a cada um a obrigação de honrar a Deus com um culto santo e sagrado, porque nós dependemos do poder dele e porque, saídos dele, a Ele devemos tornar, à mesma lei adstringem a sociedade civil. Realmente, unidos pelos laços de uma sociedade comum, os homens não dependem menos de Deus do que tomados isoladamente; tanto, pelo menos, quanto o indivíduo, deve a sociedade dar graças a Deus, de quem recebe a existência, a conservação e a multidão incontável dos seus bens. É por isso que, do mesmo modo que a ninguém é lícito descurar seus deveres para com Deus, e que o maior de todos os deveres é abraçar de espírito e de coração a religião, não aquela que cada um prefere, mas aquela que Deus prescreveu e que provas certas e indubitáveis estabelecem como a única verdadeira entre todas, assim também as sociedades não podem sem crime comportar-se como se Deus absolutamente não existisse, ou prescindir da religião como estranha e inútil, ou admitir uma indiferentemente, segundo seu beneplácito. Honrando a Divindade, devem elas seguir estritamente as regras e o modo segundo os quais o próprio Deus declarou querer ser honrado.
12. Devem, pois, os chefes de Estado ter por santo o nome de Deus e colocar no número dos seus principais deveres favorecer a religião, protegê-la com a sua benevolência, cobri-la com a autoridade tutelar das leis, e nada estatuírem ou decidirem que seja contrário à integridade dela. E isso devem-no eles aos cidadãos de que são chefes. Todos nós, com efeito, enquanto existimos, somos nascidos e educados em vista de um bem supremo e final ao qual é preciso referir tudo, colocado que está nos céus, além desta frágil e curta existência. Já que disso é que depende a completa e perfeita felicidade dos homens, é do interesse supremo de cada um alcançar esse fim. Como, pois, a sociedade civil foi estabelecida para a utilidade de todos, deve, favorecendo a prosperidade pública, prover ao bem dos cidadãos de modo não somente a não opor qualquer obstáculo, mas a assegurar todas as facilidades possíveis à procura e à aquisição desse bem supremo e imutável ao qual eles próprios aspiram. A primeira de todas consiste em fazer respeitar a santa e inviolável observância da religião, cujos deveres unem o homem a Deus.
13. Quanto a decidir qual religião é a verdadeira, isso não é difícil a quem quiser julgar disso com prudência e sinceridade. Efetivamente, provas numerosíssimas e evidentes, a verdade das profecias, a multidão dos milagres, a prodigiosa celeridade da propagação da fé, mesmo entre os seus inimigos e a despeito dos maiores obstáculos, o testemunho dos mártires e outros argumentos semelhantes, provam claramente que a única religião verdadeira é a que o próprio Jesus Cristo instituiu e deu à sua Igreja a missão de guardar e propagar.
14. Porquanto o Filho único de Deus estabeleceu na terra uma sociedade a que chamamos a Igreja, e encarregou-a de continuar através de todas as idades a missão sublime e divina que Ele mesmo recebera de seu Pai. “Assim como meu Pai me enviou, eu vos envio” (Jo 20, 21). “E eis que eu estou convosco até a consumação dos séculos” (Mt 28, 20). Do mesmo modo, pois, que Jesus Cristo veio à terra a fim de que os homens “tivessem a vida e a tivessem mais abundantemente” (Jo 10, 10), assim também a Igreja propõe-se como fim a salvação eterna das almas; e, nesse intuito, é tal a sua constituição que ela abrange na sua extensão a humanidade inteira e não é circunscrita por limite algum nem de temo, nem de lugar. “Pregai o Evangelho a toda criatura” (Mt 16, 15).
15. A essa imensa multidão de homens o próprio Deus deu chefes com o poder de governá-los. À testa deles propôs um só de quem quis fazer o maior e o maior seguro mestre da verdade, e a quem confiou as chaves do reino dos céus. “Dar-te-ei as chaves do reino dos céus” (Mt 16, 19). “Apascenta meus cordeiros... apascenta minhas ovelhas” (Jo 21, 16-17). “Roguei por ti, a fim de que tua fé não desfaleça” (Lc 22, 32).
16. Se bem que composta de homens como a sociedade civil, essa sociedade da Igreja, quer pelo fim que lhe foi designado, quer pelos meios que lhe servem para atingi-lo, é sobrenatural e espiritual. Distingue-se, pois, e difere da sociedade civil. Além disso, e isto é da maior importância, constitui ela uma sociedade juridicamente perfeita no seu gênero, porque, pela expressa vontade e pela graça do seu Fundador, possui em si e de per si todos os recursos necessários à sua existência e ação. Como o fim a que a Igreja tende é de muito o mais nobre de todos, assim também o seu poder prevalece sobre todos os outros poderes, e de modo algum pode ser inferior ou sujeita ao poder civil. Efetivamente, Jesus Cristo deu plenos poderes aos seus apóstolos na esfera das coisas sagradas, juntando-lhes tanto a faculdade de fazer verdadeiras leis como o duplo poder que dela decorre, de julgar e de punir. “Todo poder me foi dado no céu e na terra; ide pois, ensinai todas as nações...ensinando-as a observar tudo o que eu vos prescrevi” (Mt 28, 18-20). E ainda: “Tende cuidado de punir toda desobediência” (2 Cor 10, 6). Demais: “Serei mais severo em virtude do poder que o Senhor me deu para a edificação e não para a ruína” (2 Cor 13, 10). À Igreja, pois, e não ao Estado, é que pertence guiar os homens para as coisas celestes, e a ela é que Deus deu o mandato de conhecer e de decidir de tudo o que concerne à religião; de ensinar todas as nações, de estender a tão longe quanto possível as fronteiras do nome cristão; em suma, de administrar livremente e a seu inteiro talante os interesses cristãos.
17. Essa autoridade perfeita em si e só de si mesma dependente, de há muito tempo atacada por uma filosofia aduladora dos príncipes, a Igreja nunca cessou de reivindicá-la, nem de exercê-la publicamente. Os primeiros de todos os seus paladinos foram os Apóstolos, que, impedidos pelos príncipes da Sinagoga de difundirem o Evangelho, respondiam com firmeza: “Devemos obedecer a Deus antes que aos homens” (At 5, 29). Foi ela que os Padres da Igreja se aplicaram a defender por sólidas razões quando tiveram ensejo, e que os Pontífices romanos nunca deixaram de reivindicar com uma constância invencível contra os seus agressores.
18. Bem mais, tem ela tido por si, em princípio e de fato, o assentimento dos príncipes e dos chefes de Estados, que, nas suas negociações e transações, enviando e recebendo embaixadas e permutando outros bons ofícios, têm constantemente agido com a Igreja como com uma potência soberana e legítima. Por isto, não é sem uma disposição particular da Providência de Deus que essa autoridade foi munida de um principado civil, como da melhor salvaguarda da sua independência.
19. Deus dividiu, pois, o governo do gênero humano entre dois poderes: o poder eclesiástico e o poder civil; àquele preposto às coisas divinas, este às coisas humanas. Cada uma delas no seu gênero é soberana; cada uma está encerrada em limites perfeitamente determinados, e traçados em conformidade com a sua natureza e com o seu fim especial. Há, pois, como que uma esfera circunscrita em que cada uma exerce a sua ação “iure próprio”. Todavia, exercendo-se a autoridade delas sobre os mesmos súditos, pode suceder que uma só e mesma coisa, posto que a título diferente, mas no entanto uma só e mesma coisa, incida na jurisdição e no juízo de um e de outro poder. Era, pois, digno da Sábia Providência de Deus, que as estabeleceu ambas, traçar-lhes a sua trilha e a sua relação entre si. “OS poderes que existem foram dispostos por Deus” (Rom 13, 1). Se assim não fora, muitas vezes nasceriam causas de funestas contenções e conflitos e muitas vezes o homem deveria hesitar, perplexo, como em face de um duplo caminho, sem saber o que fazer, em conseqüência das ordens contrárias de dois poderes cujo jugo em consciência ele não pode sacudir. Sumamente repugnaria responsabilizar por essa desordem a sabedoria e a bondade de Deus, que, no governo do mundo físico, todavia de ordem bem inferior, temperou tão bem umas pelas outras as forças e as causas naturais, e as fez harmonizar-se de maneira tão admirável, que nenhuma delas molesta as outras, e todas, num conjunto perfeito, conspiram para a finalidade a que tende o universo. Necessário é, pois, que haja entre os dois poderes um sistema de relações bem ordenado, não sem analogia com aquele que, no homem, constitui a união da alma com o corpo. Não se pode fazer uma justa idéia da natureza e da força dessas relações senão considerando, como dissemos, a natureza de cada um dos dois poderes, e levando em conta a excelência e a nobreza dos seus fins, visto que um tem por fim próximo e especial ocupar-se dos interesses terrenos, e o outro proporcionar os bens celestes e eternos.
20. Assim, tudo o que, nas coisas humanas, é sagrado por uma razão qualquer, tudo o que é pertinente à salvação das alas e ao culto de Deus, seja por sua natureza, seja em relação ao seu fim, tudo isso é da alçada da autoridade da Igreja. Quanto às outras coisas que a ordem civil e política abrange, é justo que sejam submetidas à autoridade civil, já que Jesus Cristo mandou dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Tempos ocorrem às vezes, em que prevalece outros modo de assegurar a concórdia e de garantir a paz e a liberdade; é quando os chefes de Estado e os Sumos Pontífices se põem de acordo por um tratado sobre algum ponto particular. Em tais circunstâncias, dá a Igreja provas evidentes da sua caridade materna, levando tão longe quanto possível a indulgência e a condescendência.
21. Tal é, consoante o esboço sumário que havemos traçado, a organização cristã da sociedade civil, e essa teoria não é nem temerária nem arbitrária, mas se deduz dos princípios mais elevados e mais certos, confirmados pela própria razão natural. Essa constituição da sociedade política não tem nada que possa parecer pouco digno ou inconveniente para a dignidade dos príncipes. Longe de tirar o que quer que seja aos direitos da majestade, pelo contrário, torna-os mais estáveis e mais augustos. Muito mais: se olharmos isso mais de perto, reconheceremos nessa constituição uma grande perfeição que falta nos outros sistemas políticos; e ela produziria certamente frutos excelentes e variados se ao menos cada poder ficasse nas suas atribuições e pusesse todos os seus desvelos em cumprir o ofício e a tarefa que lhes foram determinados.
22. Com efeito, na constituição do Estado, tal como a acabamos de expor, o divino e o humano são delimitados numa ordem conveniente; os direitos dos cidadãos são assegurados e colocados sob a proteção das mesmas leis divinas, naturais e humanas; os deveres de cada um são tão sabiamente traçados quão prudentemente salvaguardada lhes é a observância. Todos os homens, nesse encaminhamento incerto e penoso para a cidade eterna, sabem que tem a seu serviço guias seguros para conduzi-los à meta, e auxiliares para atingi-la. Sabem, do mesmo modo, que outros chefes lhes foram dados para obter e conservar a segurança, os bens e as outras vantagens dessa vida.
23. A sociedade doméstica acha a sua solidez necessária na santidade do vínculo conjugal, uno e indissolúvel; os direitos e os deveres dos esposos são regulados com toda a justiça e equidade; a honra devida à mulher é salvaguardada; a autoridade do marido modela-se pela autoridade de Deus, o pátrio poder é temperado pelas atenções devidas à esposa e aos filhos; enfim, está perfeitamente provido para a proteção, para o bem estar e para a educação desses últimos.
24. Na ordem política e civil, as leis têm por fim as bem comuns, ditadas não pela vontade e pelo juízo enganador da multidão, mas pela verdade e pela justiça. A autoridade dos príncipes reveste uma espécie de caráter mais sagrado do que humano, e é contida de maneira a não se afastar da justiça, nem exceder o seu poder. A obediência dos súditos corre parelhas com a honra e a dignidade, porque não é uma sujeição de homem a homem, mas uma submissão à vontade de Deus, que reina por meio de homens. Uma vez reconhecido e aceito isso, daí resulta claramente ser um dever de justiça respeitar a majestade dos príncipes, ser submisso com fidelidade constante ao poder político, evitar as sedições e observar religiosamente a constituição do Estado.
25. Semelhantemente, nessa espécie dos deveres se colocam a caridade mútua, a bondade, a liberalidade. O homem, que é ao mesmo tempo cidadão e cristão, não mais rasgado em dois por obrigações contraditórias. Enfim, os bens consideráveis com que a religião cristã enriquece espontaneamente a própria vida terrena dos indivíduos são adquiridos para a comunidade e para a sociedade civil: donde ressalta a evidência destas palavras: “A sorte do Estado depende do culto que se tributa a Deus: e há entre ambos numerosos laços de parentesco e de estrita amizade” (Sacr. Imp. Ad Cyllirium Alexandr. Et Episcopos metrop. Cfr. Labbeum, Collect. Conc. T. III).
26. Em várias passagens Santo Agostinho, segundo o seu costume, salientou o valor desses bens, mormente quando interpela a Igreja Católica nestes termos: “Tu conduzes e instruis as crianças com ternura, os jovens com força, os velhos com calma, como o comporta a idade não somente do corpo, mas ainda da alma. Sujeitas as mulheres aos maridos por uma casta e fiel obediência, não para cevar a paixão, mas para propagar a espécie e constituir a sociedade da família. Dás autoridade aos maridos sobre as mulheres, não para zombarem do sexo, mas para seguirem as leis de um sincero amor. Subordinas os filhos aos pais por uma espécie de servidão livre e prepões os pais aos filhos por uma espécie de terna autoridade. Unes não só em sociedade, mas numa espécie de fraternidade, os cidadãos aos cidadãos, as nações às nações e os homens entre si pela lembrança dos primeiros pais. Ensinas os reis a velarem sobre os povos, e prescreves aos povos submeter-se aos reis. Ensinas com cuidado a quem é que é devida a honra, a quem a afeição, a quem o respeito, a quem o temor, a quem a consolação, a quem a advertência, a quem o incentivo, a quem a correção, a quem a reprimenda, a quem o castigo; e fazes saber como, se nem todas essas coisas são devidas a todos, a todos é devida a caridade, e a ninguém a injustiça” (De moribus Eccl., cap. XXX, n. 63).
27. Noutro lugar, o mesmo Doutor repreende nestes termos a falsa sabedoria dos políticos filósofos: “Os que dizem que a doutrina de Cristo é contrária ao bem do Estado dêem-nos um exército de soldados tais como os faz a doutrina de Cristo, dêem-nos tais governadores de províncias, tais maridos, tais esposas, tais pais, tais filhos, tais mestres, tais servos, tais reis, tais juízes, tais contribuintes, enfim, e agentes do fisco tais como os quer a doutrina cristã! E então ousem ainda dizer que ela é contrária ao Estado! Muito antes, porém, não hesitem em confessar que ela é uma grande salvaguarda para o Estado quando é seguida” (Epist. 138 (al. 5) ad Marcellinum, cap. II, n. 15).
28. Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados. Nessa época, a influência da sabedoria cristã e a sua virtude divina penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade civil. Então a religião instituída por Jesus Cristo, solidamente estabelecida no grau de dignidade que lhe é devido, em toda parte era florescente, graças ao favor dos príncipes e à proteção legítima dos magistrados. Então o sacerdócio e o império estavam ligados em si por uma feliz concórdia e pela permuta amistosa de bons ofícios. Organizada assim, a sociedade civil deu frutos superiores a toda expectativa, frutos cuja memória subsiste e subsistirá, consignada como está em inúmeros documentos que artifício algum dos adversários poderá corromper ou obscurecer.
29. Se a Europa cristã domou as nações bárbaras e as fez passar da ferocidade para a mansidão, da superstição para a verdade; se repeliu vitoriosamente as invasões muçulmanas, se guardou a supremacia da civilização, e se, em tudo que faz honra à humanidade, constantemente e em toda parte se mostrou guia e mestra; se brindou os povos com a verdadeira liberdade sob essas diversas formas, se sapientissimamente fundou uma multidão de obras para o alívio das misérias; é fora de toda dúvida que, assim, ela é grandemente devedora à religião, sob cuja inspiração e com cujo auxílio empreendeu e realizou tão grandes coisas.
30. Todos esses bens durariam ainda se o acordo dos dois poderes houvesse perseverado, e havia razão para esperar outros ainda maiores, se a autoridade, se o ensino, se os conselhos da Igreja tivesses encontrado uma docilidade mais fiel e mais constante. Por quanto dever-se-ia ter como lei imprescritível aquilo que Yves de Chartres escreveu ao Papa Pascoal II: “Quando o mundo é bem governado, a Igreja é florescente e fecunda. Mas, quando a discórdia se interpõe entre eles, não somente as pequenas coisas não crescem, mas as próprias grandes deperecem miseravelmente” (Epist. 238).
31. Mas esse pernicioso e deplorável gosto de novidades que o século XVI viu nascer, depois de primeiro haver transtornado a religião cristã, em breve, por um declive natural, passou à filosofia, e da filosofia a todos os graus da sociedade civil. É a essa fonte que cumpre fazer remontar esses princípios modernos de liberdade desenfreada sonhados e promulgados por entre as grandes perturbações do século último, como os princípios e fundamentos de um “direito novo”, até então desconhecidos e sobre mais de um ponto em desacordo não somente com o direito cristão, mas com o direito natural. Eis aqui o primeiro de todos esses princípios: todos os homens, já que são da mesma raça e da mesma natureza, são semelhantes, e, “ipso facto”, iguais entre si na prática da vida; cada um depende tão bem só de si, que de modo algum está sujeito à autoridade de outrem: pode com toda liberdade pensar sobre qualquer coisa o que quiser, fazer o que lhe aprouver; ninguém tem o direito de mandar aos outros. Numa sociedade fundada sobre estes princípios, a autoridade pública é apenas a vontade do povo, o qual, só de si mesmo dependendo, é também o único a mandar a si. Escolhe os seus mandatários, mas de tal sorte que lhes delega menos o direito do que a função do poder, para exercê-la em seu nome. A soberania de Deus é passada em silencia, exatamente como se Deus não existisse, ou não se ocupasse em nada com a sociedade do gênero humano; ou então como se os homens, quer em particular, quer em sociedade, não devessem nada a Deus, ou como se pudesse imaginar-se um poder qualquer cuja causa, força, autoridade não residisse inteira no próprio Deus.
32. Destarte, como se vê, o Estado não outra coisa mais senão a multidão soberana e que se governa por si mesma e desde que o povo é considerado a fonte de todo o direito e de todo o poder, segue-se que o Estado não se julga jungido a nenhuma obrigação para com Deus, não professa oficialmente nenhuma religião, não é obrigado a perquirir qual é a única verdadeira entre todas, nem a preferir uma às outras, nem a favorecer uma principalmente; mas a todas deve atribuir a igualdade em direito, com este fim apenas, de impedi-las de perturbarem a ordem pública. Por conseguinte, cada um será livre de se fazer juiz de qualquer questão religiosa, cada um será livre de abraçar a religião que prefere ou de não seguir nenhuma se nenhuma lhe agradar. Daí decorrem necessariamente a liberdade sem freio de toda consciência, a liberdade absoluta de adorar ou de não adorar a Deus, a licença sem limites de pensar e de publicar os próprios pensamentos.
33. Dado que o Estado repousa sobre esses princípios, hoje em grande favor, fácil é ver a que lugar se relega injustamente a Igreja. Com efeito, onde quer que a prática está de acordo com tais doutrinas, a religião católica é posta, no Estado, em pé de igualdade, ou mesmo de inferioridade, com sociedades que lhes são estranhas. Não se tem em nenhuma conta as leis eclesiásticas; a Igreja, que recebeu de Jesus Cristo ordem e missão de ensinar todas as nações, vê-se interdizer toda ingerência na instrução pública. Nas matérias que são de direito misto, os chefes de Estado expedem por si mesmos decretos arbitrários, e sobre esses pontos ostentam um soberbo desprezo pelas santas leis da Igreja.
34. Assim, fazem depender da sua jurisdição os casamentos dos cristãos; decretam leis sobre o vínculo conjugal, sua unidade, sua estabilidade; deitam mão aos bens dos clérigos e negam à Igreja o direito de possuir. Em suma, tratam a Igreja como se ela não tivesse nem o caráter nem os direitos de uma sociedade perfeita, e fosse uma mera associação semelhante às outras que existem no Estado. Por isso, tudo o que ela tem de direitos, de poder legítimo de ação, fazem-no eles depender da concessão e do favor dos governantes.
35. Nos Estados em que a legislação civil deixa à Igreja a sua autonomia, e onde uma concordata pública interveio entre os dois poderes, a princípio grita-se que é preciso separar os negócios da Igreja dos negócios do Estado, e isso no intuito de poder agir impunemente contra a fé jurada e fazer-se árbitro de tudo afastando todos os obstáculos. Mas, como a Igreja não pode sofrê-lo pacientemente, pois seria para ela desertar os maiores e os mais sagrados dos deveres, e como reclama absolutamente o cumprimento religioso da fé que lhe foi jurada, muitas vezes nascem entre o poder espiritual e o poder civil conflitos, cujo desfecho quase inevitável é sujeitar aquele que é menos provido de meios humanos ao que é mais provido. Assim, nessa situação política que muitos favorecem hoje em dia, há uma tendência das idéias e das vontades para expulsar inteiramente a Igreja da sociedade, ou para mantê-la sujeita e acorrentada ao Estado. A maior parte das medidas tomadas pelos governos inspiram-se nesse desígnio. As leis, a administração pública, a educação sem religião, a espoliação e a destruição das Ordens religiosas, a supressão do poder temporal dos Pontífices romanos, tudo tende a este fim: ferir no coração as instituições cristãos, reduzir a nada a liberdade da Igreja Católica, e ao nada os seus demais direitos.
36. A simples razão natural demonstra o quanto se afasta da verdade esta maneira de entender o governo civil. O testemunho dela, com efeito, basta para estabelecer que tudo o que há de autoridade entre os homens procede de Deus, como de uma fonte augusta e suprema. Quanto à soberania do povo, que, sem levar em nenhuma conta a Deus, se diz residir por direito natural no povo, se ela é eminentemente própria para lisonjear e inflamar uma multidão de paixões, não assenta em nenhum fundamento sólido e não pode ter força bastante para garantir a segurança pública e a manutenção tranqüila da ordem. De feito, sob o império dessas doutrinas, os princípios cederam a ponto de, para muitos, ser uma lei imprescritível em direito político poder legitimamente levantar sedições. Porquanto prevalece a opinião de que os chefes do governo são meros delegados encarregados de executar a vontade do povo: donde esta conseqüência necessária: que tudo pode igualmente mudar ao sabor do povo, e que sempre há a temer distúrbios.
37. Relativamente à religião, pensar que é indiferente tenha ela formas disparatadas e contrárias equivale simplesmente a não querer nem escolher nem seguir qualquer delas. É o ateísmo menos o nome. Efetivamente, quem quer que creia em Deus, se for conseqüentemente e não quer cair no absurdo, deve necessariamente admitir diferença, disparidade e oposição, mesmo sobre os pontos mais importantes, não podem ser todos igualmente bons, igualmente agradáveis a Deus.
38. Assim, também, a liberdade de pensar e publicar os próprios pensamentos, subtraída a toda regra, não é por si um bem de que a sociedade tenha que se felicitar; mas é antes a fonte e a origem de muitos males. A liberdade, esse elemento de perfeição para o homem, deve aplicar-se ao que é verdadeiro e ao que é bom. Ora, a essência do bem e da verdade não pode mudar ao sabor do homem, mas persiste sempre a mesma, e, não menos do que a natureza das coisas, é imutável. Se a inteligência adere as opiniões falsas, se a vontade escolhe o mal e a ele se apega, nem uma nem outra atinge a sua perfeição, ambas decaem da sua dignidade nativa e se corrompem. Não é, pois, permitido dar a lume e expor aos olhos dos homens o que é contrário à virtude e à verdade, e muito menos ainda colocar essa licença sob a tutela e a proteção das leis. Não há senão um caminho para chegar ao céu, para o qual todos nós tendemos: é uma boa vida. O Estado afasta-se, pois, das regras e prescrições da natureza se favorece a licença das opiniões e das ações culposas ao ponto de se poderem impunemente desviar os espíritos da verdade e as almas da virtude.
39. Quanto à Igreja, que o próprio Deus estabeleceu, excluí-la da vida pública, das leis, da educação da juventude, da sociedade doméstica, é m grande e pernicioso erro. Uma sociedade sem religião não pode ser bem regulada; e, mais talvez do que fora mister, já se vê o que vale em si e em suas conseqüências essa pretensa moral civil.
40. A verdadeira mestra da juventude e a guardiã dos costumes é a Igreja de Cristo. É ela quem conserva na sua integridade os princípios de onde emanam os deveres, e quem sugerindo os mais nobres motivos de vem viver, ordena não somente fugir às más ações, mas domar os movimentos da alma contrários à razão, ainda quando não se traduzem em ato.
41. Pretender sujeitar a Igreja ao poder civil no exercício do seu ministério é a um tempo uma grande injustiça e uma grande temeridade. Por essa mesma razão, perturba-se a ordem, pois se dá o passo às coisas naturais sobre as coisas sobrenaturais; estanca-se, ou, certamente, se diminui muito o afluxo dos bens com que, se estivesse sem peias, a Igreja cumularia a sociedade; e, demais, abre-se a voz a ódios e a lutas cuja grande e funesta influência sobre ambas as sociedades tem sido demonstrado por experiências mais do que freqüentes.
42. Essas doutrinas, que a razão humana reprova e têm uma influência tão considerável sobre a marcha das coisas públicas, os Pontífices romanos, Nossos predecessores, na plena consciência daquilo que deles reclamava o múnus apostólico, jamais sofreram fossem impunemente emitidas. Assim foi que, na sua Carta Encíclica “Mirari vos”, de 15 de agosto de 1832, Gregório XVI, com grande autoridade doutrinal, repeliu o que se avançava desde então, insto é, que em matéria de religião não há escolha a fazer: que cada um depende apenas da própria consciência e pode, além disso, publicar o que pensa e tramar revoluções no Estado. A respeito da separação da Igreja do Estado, exprime-se nestes termos esse Pontífice: “Não podemos esperar para a Igreja e para o Estado resultados melhores das tendências dos que pretendem separar a Igreja do Estado e romper a concórdia mútua entre o sacerdócio e o império. É que, com efeito, os fautores de uma liberdade desenfreada temem essa concórdia, que sempre foi tão propícia e salutar aos interesses religiosos e civis”. Da mesma maneira, Pio IX, cada vez que se apresentou ensejo, condenou as falsas opiniões mais em voga, e que, em tal dilúvio de erros, os católicos tivessem uma direção segura.
43. Dessas decisões dos Sumos Pontífices, cumpre absolutamente admitir que a origem do poder público deve atribuir-se a Deus, e não à multidão; que o direito à rebelião repugna a razão; que não fazer nenhum caso dos deveres da religião, ou tratar da mesma maneira as diferentes religiões, não é permitido nem aos indivíduos nem às sociedades; que a liberdade ilimitada de pensar e d emitir em público os próprios pensamentos de modo algum deve ser colocada entre os direitos dos cidadãos, nem entre as coisas dignas de favor e de proteção.
44. Do mesmo modo, cumpre admitir que, não menos que o Estado, a Igreja, por sua natureza e de pleno direito, é uma sociedade perfeita; que os depositários do poder não devem pretender escravizar e subjugar a Igreja, nem lhe diminuir a liberdade de ação na sua esfera, nem lhe tirar seja qual for dos direitos que lhe foram conferidos por Jesus Cristo. Nas questões do direito misto, é plenamente conforme à natureza, bem como aos desígnios de Deus, não separar um poder do outros, e ainda menos pô-los em luta, mas sim estabelecer entre eles essa concórdia que está em harmonia com os atributos especiais por cada sociedade recebidos da sua natureza.
45. Tais são as regras traçadas pela Igreja Católica relativamente à constituição e ao governo dos Estados. Esses princípios e esses decretos, se se quiser julgar somente deles, não reprovam em si nenhuma das diferentes formas de governo, visto que estas nada têm que repugne à doutrina católica, e, se forem aplicadas com sabedoria e justiça, todos podem garantir a prosperidade pública. Bem mais, não se reprova em si que o povo tenha sua parte maior ou menor no governo; isto até, em certos tempos e sob certas leis, pode tornar-se não somente uma vantagem, mas um dever para os cidadãos. Demais, não há para ninguém justo motivo de acusar a Igreja de ser inimiga quer de uma justa tolerância, quer de uma são e legítima liberdade.
46. Efetivamente, se a Igreja julga não ser lícito por os diversos cultos no mesmo pé legal que a verdadeira religião, nem por isso condena os chefes de Estado que, em vista de um bem a alcançar ou de um mal a impedir, toleram na prática que esses diversos cultos tenham cada um seu lugar no Estado.
47. É, aliás, costume da Igreja velar com o maior cuidado por que ninguém seja forçado a abraçar a fé católica contra sua vontade, porquanto, como observa sabiamente Santo Agostinho, “o homem não pode crer senão querendo” (tract. XXVI in Ioan., n. 2).
48. Pela mesma razão, não pode a Igreja aprovar uma liberdade que gera o desgosto das mais santas leis de Deus e sacode a obediência devida à autoridade legítima. Isso é mais uma licença do que uma liberdade, e Santo Agostinho lhe chama mui justamente “uma liberdade de perdição” (Epist. CV, ad Donatistas, cap. II, n. 9) e o Apóstolo S. Pedro “um véu de maldade” (1 Ped 2, 16). Muito mais: sendo oposta à razão, essa pretensa liberdade é uma verdadeira escravidão. “Aquele que comete o pecado é escravo do pecado” (Jo 8, 34).
49. Pelo contrário, liberdade verdadeira e desejável é a que, na ordem individual, não deixa o homem escravo nem dos erros, nem das paixões, que são os seus piores tiranos; e na ordem pública traça regras sábias aos cidadãos, facilita largamente o incremento do bem-estar e preserva do arbítrio de outrem a coisa pública. Essa liberdade honesta e digna do homem, a Igreja a aprova ao mais alto ponto, e, para garantir aos povos o firme e integral gozo dela, nunca cessou de lutar e de combater.
50. Sim, na verdade, tudo o que pode haver de salutar para o bem geral no Estado; tudo o que é útil para proteger o povo contra a licença dos príncipes que lhe não provêem ao bem; tudo o que impede as usurpações injustas do Estado sobre a comuna ou sobre a família; tudo o que interessa à honra, à personalidade humana e à salvaguarda dos direitos iguais de cada um; de tudo isso a Igreja Católica sempre tomou quer a iniciativa, quer o patrocínio, quer a proteção, como atestam os monumentos das idades precedentes. Sempre coerente consigo mesma, se, de uma parte, dela repele uma liberdade imoderada que, para os indivíduos e para os povos, degenera em licença ou em escravidão, de outra parte abraça com todo o gosto os progressos que todo dia nascem, se verdadeiramente contribuem para a prosperidade desta vida, que é como um encaminhamento para a vida futura e para sempre duradoura. Assim, pois, dizer que a Igreja vê com maus olhos as formas mais modernas dos sistemas políticos e repele em bloco todas as descobertas do gênio contemporâneo, é uma calúnia vã e sem fundamento. Sem dúvida, ela repudia as opiniões malsãs, reprova a inclinação perniciosa para a revolta, e mui particularmente essas predisposições dos espíritos em que já reponta a vontade de se afastar de Deus; mas, como tudo o que é verdadeiro não pode proceder senão de Deus, em tudo o que as investigações do espírito humano descobrem de verdade, a Igreja reconhece como que um vestígio da inteligência divina; e como não há nenhuma verdade natural que infirme a fé nas verdades divinamente reveladas, como há muitas que a confirmam, e como todo descobrimento da verdade pode levar a conhecer e a louvar ao próprio Deus, a Igreja acolherá sempre de bom grado e com alegria tudo o que contribuir para alargar a esfera das ciências; e, assim como sempre o fez para com as outras ciências, favorecerá e incentivará aquelas que tem por objeto o estudo da natureza. Nesse gênero de estudos, a Igreja não se opõe a nenhuma descoberta do espírito; vê sem desprezar tantas investigações que tem por fim o prazer e o bem-estar; e, mesmo, inimiga nata da inércia e da preguiça, deseja grandemente que o exercício e a cultura façam o gênio do homem dar frutos abundantes. Ela tem incentivos para toda espécie de artes e indústrias, e, dirigindo por sua virtude todas essas investigações para um fim honesto e salutar, aplica-se a impedir que a inteligência e a indústria do homem não o desviem de Deus e dos bens celestes.
51. Esta maneira de agir, todavia tão racional e tão sábia, é que é desacreditada nestes tempos em que os Estados não somente recusam conformar-se aos princípios da filosofia cristã, mas parecem querer afastar-se dela cada dia mais. Não obstante, sendo próprio da luz irradiar por si mesma ao longe e penetrar aos poucos os espíritos dos homens, movidos como somos pela consciência das altíssimas e santíssimas obrigações da missão apostólica de que estamos investidos para com todos os povos, livremente proclamamos, consoante o Nosso dever, a verdade, não porque não levemos em nenhuma conta os tempos, ou julgamos dever proscrever os honestos e úteis progressos da Nossa idade; mas porque quereríamos ver os negócios públicos seguirem caminhos menos perigosos e repousarem em fundamentos mais sólidos, e isso deixando intacta a liberdade legítima dos povos; essa liberdade de que a verdade é entre os homens a fonte e a melhor salvaguarda: “A verdade vos libertará” (Jo 7, 32).
52. Se, pois, nessas conjunturas difíceis os católicos Nos escutarem, como é seu dever, saberão exatamente quais são os deveres de cada um na “teoria” como na “prática”. Na teoria, primeiro, é necessário ater-se com decisão inabalável a tudo o que os Pontífices romanos têm ensinado ou ensinarem, e, todas as vezes que as circunstâncias o exigirem, fazer disso profissão pública. Particularmente no que diz respeito às “liberdades modernas”, como lhes chamam, deve cada um ater-se ao julgamento da Sé Apostólica e conformar-se com suas decisões. Cumpre resguardar-se de se deixar enganar pela honestidade especiosa dessas liberdades, e lembrar-se de que fontes elas emanam e por que espírito se propagam e se sustentam. A experiência já tem feito suficientemente conhecer os resultados que elas têm tido para a sociedade, e o quanto os frutos que elas têm dado inspiram com toda razão pesares aos homens funestos e prudentes. Se existe algures, ou pelo pensamento se imaginar um Estado que persiga disfaçada e tiranicamente o nome cristão, e se o confrontarmos com o gênero do governo moderno de que falamos, este último poderá parecer mais tolerável. Certamente, os princípios em que este último se baseia são de tal natureza, como dissemos, que em si mesmo por ninguém devem ser aprovados.
53. Na prática, a ação pode exercer-se já nos negócios privados e domésticos, já nos negócios públicos. Na ordem privada, o primeiro dever de cada um é de conformar exatamente a própria vida e os próprios costumes aos preceitos do Evangelho, e de não recuar ante o que a virtude cristã impõe de um pouco difícil de sofrer e aturar. Todos devem, além disso, amar a Igreja como sua Mãe comum, obedecer às suas leis, prover à sua honra, salvaguardar-lhe os direitos, e tomar cuidado de que aqueles sobre os quais exercem alguma autoridade a respeitem e a amem com a mesma piedade filial.
54. À salvação pública importa ainda que os católicos emprestem sensatamente o seu concurso à administração dos negócios municipais e se apliquem sobretudo a fazer com que a autoridade pública atenda à educação religiosa e moral da juventude, como convém a cristãos: daí depende sobretudo a salvação da sociedade. Será geralmente útil e louvável que os católicos estendam a sua ação além dos limites desse campo demasiado restrito, e se cheguem aos grandes cargos do Estado. “Geralmente”, dizemos, porque aqui os Nossos conselhos se dirigem a todas as nações. Aliás, pode suceder algures que, por motivos os mais graves e os mais justos, absolutamente não seja conveniente participar dos negócios públicos seria tão repreensível como não trazer à utilidade comum nem desvelo nem concurso: tanto mais quanto, em virtude mesmo da doutrina que professam, os católicos são obrigados a cumprir esse dever com toda integridade e consciência. Aliás. Abstendo-se eles, as rédeas do governo passarão sem contestação às mãos daqueles cujas opiniões certamente não oferecem grande esperança de salvação para o Estado.
55. Seria isso, ademais, pernicioso aos interesses cristãos, porque os inimigos da Igreja teriam todo o poder e os defensores dela, nenhum. Evidentemente é, pois, que os católicos têm justos motivos para participar da vida política; porquanto o fazem e o devem fazer não para aprovar aquilo que pode haver de censurável presentemente nas instituições políticas; porquanto o fazem e o devem fazer não para aprovar aquilo que pode haver de censurável presentemente nas instituições políticas, mas para tirar dessas próprias instituições, tanto quanto possível, o bem público sincero e verdadeiro, propondo-se infundir em todas as veias do Estado, como uma seiva e um sangue reparador, a virtude e a influência da religião católica.
56. Assim foi nas primeiras idades da Igreja. Nada estava mais distanciado das máximas e costumes do Evangelho do que as máximas e costumes dos pagãos; viam-se, todavia, os cristãos, incorruptíveis em plena superstição e sempre semelhantes a si mesmos, entrarem corajosamente em toda parte onde se abria um acesso. De uma fidelidade exemplar para com os príncipes e de uma obediência às leis do Estado tão perfeita como lhes era lícito, eles lançavam de toda parte um maravilhoso brilho de santidade, esforçavam-se por ser úteis a seus irmãos e por atrair os outros a seguirem Nosso Senhor, dispostos entretanto a ceder o lugar e a morrer corajosamente se não pudessem, sem vulnerar a sua consciência, conservar as honras as magistraturas e os cargos militares. Desse modo, introduziram eles rapidamente as instituições cristãs não somente nos lares domésticos, mas nos acampamentos, na cúria, e até no palácio imperial. “Somos apenas de ontem, e já enchemos tudo o que é vosso, vossas cidades, vossas ilhas, vossas fortalezas, vossos municípios, vossos conciliábulos, vossos próprios acampamentos, as tribos, as decúrias, o palácio, o senado, o fórum” (Tertull., Apol., n. 37). Por isso, quando foi permitido professar publicamente o Evangelho, a fé cristã apareceu em grande número de cidades não em vagidos ainda, porém forte e já cheia de vigor.
57. Nos tempos em que estamos, há toda razão para renovar esses exemplos de nossos pais. Antes de tudo, é necessário que todos os católicos dignos deste nome se determinem a ser e mostrar-se filhos dedicados da Igreja; que repilam sem hesitar tudo o que seja incompatível com essa profissão; que se sirvam das instituições públicas, tanto quanto o puderem fazer em consciência, em proveito da verdade e da justiça; que trabalhem para que a liberdade não exceda o limite traçado pela lei natural e divina; que tomem a peito reconduzir toda constituição pública a essa forma cristã que havemos proposto para modelo.
58. Não é coisa fácil determinar um modo único e certo para realizar esses dados, visto dever ele convir a lugares e a tempos mui dispares entre si. Não obstante, cumpre antes de tudo conservar a concórdia das vontades e tender à uniformidade da ação. Obter-se-á seguramente esse duplo resultado se cada um tomar como regra de conduta as prescrições da Sé Apostólica e a obediência aos bispos, que “o Espírito Santo estabeleceu para reger a Igreja de Deus” (At 20, 28). A defesa do nome cristão reclama imperiosamente que o assentimento às doutrinas ensinadas pela Igreja seja da parte de todos unânime e constante, e, por este lado, cumpre resguardar-se ou de estar, no que quer que seja, de conivência com as falsas opiniões, ou de combatê-las mais molemente do que comporta a verdade. Quanto às coisas sobre que se pode discutir livremente, será lícito discutir com moderação e no intuito de procurar a verdade, mas pondo de lado as suspeitas injustas e as acusações recíprocas.
59. Para este fim, no medo de que a união dos espíritos seja destruída por acusações temerárias, eis aqui o que todos devem admitir: a profissão íntegra da fé católica absolutamente incompatível com as opiniões que se aproximam do “racionalismo” e do “naturalismo”, e cujo capital é destruir completamente as instituições cristãs e estabelecer na sociedade a autoridade do homem em lugar da de Deus. Não é, tão pouco, permitido ter duas maneira de proceder: uma em particular e outra em público, de modo a respeitar a autoridade da Igreja ma vida privada e a rejeitá-la na vida pública; isso seria aliar juntos o bem e o mal e pôr o homem em luta consigo mesmo, quando, ao contrário, deve ele sempre ser coerente, e em nenhum gênero de vida ou de negócios afastar-se da virtude cristã. Mas se se tratar de questões puramente políticas, do melhor gênero de governo, de tal ou tal sistema de administração civil, divergências honestas são lícitas. A justiça não sobre, pois, que se criminem homens cuja piedade é aliás conhecida, e cuja mente é inteiramente disposta a aceitar docilmente as decisões da Santa Sé, por serem de opinião diferente sobre os pontos em questão. Injustiça muito maior ainda seria suspeitar-lhes a fé ou acusá-los de traí-la, como mais de uma vez o havemos lamentado. Seja esta lei uma imprescritível para os escritores e sobretudo para os jornalistas.
60. Numa luta em que os maiores interesses estão em jogo, não se deve deixar lugar algum às dissensões intestinas ou ao espírito de partido; mas, num acordo unânime dos espíritos e dos corações, todos devem perseguir o escopo comum, que é salvar os grandes interesses da religião e da sociedade. Se, pois, no passado, tiveram lugar alguns dissentimentos, cumpre sepultá-los num sincero esquecimento; se alguma temeridade, se alguma injustiça foi cometida, seja qual for o culpado, cumpre tudo reparar por uma caridade recíproca tudo redimir por um comum assalto de deferências para com a Santa Sé. Deste modo, obterão os católicos duas vantagens importantíssimas: a de ajudarem a Igreja a conservar e a propagar a doutrina cristã, e a de prestarem o serviço mais assinalado à sociedade, cuja salvação está fortemente comprometida pelas más doutrinas e pelas más paixões.
61. É isso, Veneráveis Irmãos, o que julgamos dever ensinar a todas as nações do orbe católico sobre a constituição cristã dos Estados e os deveres privados dos súditos. Resta-Nos implorar por ardentes preces o socorro celeste, e suplicar a Deus fazer Ele próprio atingirem o termo desejado todos os Nossos desejos e todos os Nossos esforços para a sua glória e para a salvação do gênero humano, Ele que é só quem pode iluminar os espíritos e tocar os corações dos homens. Como penhor das bênçãos divinas e em testemunho da Nossa paternal benevolência, damo-Vos na caridade do Senhor, Veneráveis Irmãos, a Vós bem como ao clero e ao povo inteiro confiado à Vossa guarda e à Vossa vigilância, a Benção Apostólica.
Dado em Roma, em S. Pedro, a 1° de novembro de 1885, oitavo ano do Nosso Pontificado.
O Cânon de Jâmnia
No tempo do Imperador Romano Nero, desencadeou-se a primeira revolta aberta dos judeus da Palestina contra Roma (66-70). Tito, na primavera de 70, sitiou Jerusalém, a cidade inteira foi saqueada, arrasada e o Templo foi destruído no dia 10 do mês de agosto do mesmo ano. Os fariseus de Jerusalém (16) se transferiram para a cidade de Jâmnia, onde formaram próspera escola rabínica. Aproximadamente no ano 90, este grupo de rabinos define uma lista dos livros que deveriam ser considerados sagrados pelos Judeus. O Cânon de Jâmnia (como ficou conhecida esta lista) deu origem à atual Bíblia Hebraica. O Cânon de Jâmnia excluiu os sete livros deuterocanônicos [do AT] e os acréscimos de Daniel e Ester.
Um cânon sagrado pré-existente?
Alguns afirmam que o Cânon de Jâmnia foi a confirmação de um Cânon Sagrado anterior e definido pela autêntica Tradição judaica.
Segundo esta tese, o fato de Jesus e os Apóstolos se referirem às Escrituras Sagradas disponíveis em seu tempo de forma geral (“Escrituras”), mostra que eles tinham em mente uma quantidade precisa de livros que estavam incluídos sob aqueles títulos gerais.
Apresenta-se como prova o registro do Evangelista Lucas ao diálogo entre Jesus e os discípulos na estrada de Emaús: ‘E começando por Moisés e por todos os profetas, explicava-lhes o que dele se achava em todas as Escrituras.”(Lc 24,27). A expressão “todas as Escrituras” demonstraria que já no tempo de Cristo, uma lista de livros canônicos já estava fixada.
Cita-se ainda João 5,39, quando Jesus manda os Fariseus, que eram os legítimos intérpretes da Lei (cf. Mt 23,1), verificarem que Nele se cumpriram todas as profecias messiânicas. Jesus ao utilizar a expressão “Escrituras” estaria se referindo a um conjunto de livros bem conhecido, tanto por Ele quanto pelos Fariseus.
Chama-se ainda a atenção à expressão “Moisés e os Profetas” (cf. Lc 24,27). “Moisés e os Profetas” ou “A Lei e os Profetas” seria a estrutura de como este cânon judeu estaria organizado, sendo que na seção “Lei”, estariam contidos também os Salmos (cf. João 10,34). Assim, se quer defender a existência de um cânon bíblico, organizado em uma tríplice estrutura: a Lei, os Profetas e os Salmos. Também se costuma fazer referência a Lc 24,44, onde Jesus ao aparecer aos apóstolos e discípulos lhes disse: “(...) era necessário que se cumprisse tudo o que de mim está escrito na Lei de Moisés, nos profetas e nos Salmos”.
Estes argumentos são bastante frágeis, pois em todas as referências apresentadas, Jesus está tentando demonstrar que Nele se cumprem todas as profecias messiânicas. E onde estão estas profecias? Estão justamente nos livros de Moisés, nos Profetas e nos Salmos. Desta forma, dentro do contexto em questão, é bem mais certo que Jesus esteja referenciando esta triplica estrutura, porque nela se encontram as profecias messiânicas, do que Ele esteja fazendo referência a um cânon sagrado existente em seu tempo.
Há também quem apresente como prova do suposto cânon, então confirmado pelo Cânon de Jâmnia, os testemunhos históricos de Flávio Josefo e Áquila (o qual criou uma nova versão grega das Escrituras hebraicas, que leva o seu nome).
O testemunho de Áquila é reconhecidamente posterior ao Cânon de Jâmnia, e por isso, também não pode ser aceito como prova; muito pelo contrário...
Por outro lado, reproduziremos abaixo o texto de Josefo, conforme consta em sua obra “Contra Apion”:
“38. É, pois natural, ou melhor dizendo, necessário, que não exista entre nós uma multiplicidade de livros em contradição entre si, senão somente vinte e dois (17) que contém os registros de toda história e que com toda justiça são dignos de confiança. 39. Deles, existem cinco de Moisés, os quais contêm as leis e a tradição desde a criação do homem até a morte de Moisés. Compreende, mais ou menos, um período de três mil anos. 40. Desde a morte de Moisés até Artaxerxes (18), sucessor de Xerxes (19) como rei dos persas, aos profetas posteriores a Moisés foram deixados os feitos do seu tempo em treze livros, os quatro restantes contém hinos a Deus e conselhos morais aos homens. 41. Também desde Artaxerxes [tempo do Profeta Esdras] até nossos dias cada acontecimento tem sido registrado; embora estes não sejam dignos da mesma confiança dos anteriores, porque não havia uma sucessão rigorosa de profetas. 42. Os feitos provam com claridade como nós nos acercamos das nossas próprias escrituras: havendo já transcorrido tanto tempo, ninguém se atreveu a adicionar, tirar ou trocar nada nelas “ (JOSEFO, 2006, p. 21-22).
Não é possível precisar se o testemunho de Josefo é anterior ou posterior ao Cânon de Jâmnia, devido à incerteza entre as datas do Cânon e seu testemunho.
Costuma-se dizer que “Contra Apion” foi terminada pelo ano 94; e o Cânon de Jâmnia, normalmente é referido pelos especialistas como sendo do ano 90. Entretanto, nenhuma destas datas é conclusiva; sabemos apenas que ambos são os últimos anos do séc I d.C.
Com efeito, não é possível precisar se o testemunho de Josefo é anterior ou não ao Cânon de Jâmnia, devido à incerteza entre as datas do Cânon e seu testemunho. Esta incerteza compromete por completo o testemunho de Josefo, pois não se sabe com certeza se o mesmo foi influenciado ou não pelo Cânon de Jâmnia. Porém, há indícios que sim.
Josefo era fariseu e os rabinos de Jâmnia também, assim possivelmente ele esteja simplesmente defendendo a posição de sua facção religiosa.
O prólogo da tradução Grega do Eclesiástico (ou Sabedoria de Sirac), livro escrito por volta de 130 a.C., portanto anterior ao testemunho de Josefo, parece contradizê-lo. Nele lemos:
“Pela Lei, pelos Profetas e por outros escritores que os sucederam, recebemos inúmeros ensinamentos importantes (...) Foi assim que após entregar-se particularmente ao estudo atento da Lei, dos Profetas e dos outros Escritos, transmitidos por nossos antepassados [...]”.
Enquanto o testemunho de Josefo procura restringir o Cânon Sagrado ao tempo de Esdras, “porque [depois de Esdras] não houve uma sucessão precisa de profetas”, o Eclesiástico parece ser mais amplo e fiel à História ao afirmar que “por outros escritores que os sucederam [os profetas], recebemos inúmeros ensinamentos importantes”.
O testemunho do Eclesiástico refere-se a livros posteriores ao tempo dos Profetas.
Veja o que estudioso protestante Leonard Rost tem a dizer sobre isso:
“Vê-se, pelo prólogo de Sirac [Eclesiástico ou Sabedoria de Sirac], que, além dos escritos assumidos no Cânon hebraico, traduziram-se também outros que parecem ter gozado de bastente estima como obras religiosas de edificação, em círculos mais ou menos amplos, até o final do século I d.C” (ROST, 1980, p.19).
Há ainda em Josefo um trecho bem polêmico, vejamos:
“havendo já transcorrido tanto tempo, ninguém se atreveu a adicionar, tirar ou trocar nada nelas [nas Escrituras]”.
Alguns entendem que neste trecho Josefo confirma que os livros escritos depois do tempo de Esdras não estavam dispostos num mesmo volume com os livros que foram escritos antes deste mesmo período (protocanônicos), pois isto configuraria um acréscimo nos primeiros.
Ora, ele está dizendo que nada foi alterado nos textos presentes nestes livros, nenhuma sílaba a mais, nenhuma a menos. Josefo não está se referindo à adição ou retirada de livros a um conjunto pré-estabelecido de outros livros.
A tese do Cânon pré-existente apresenta sérios problemas. Primeiro, se este suposto cânon correspondia ao Cânon de Jâmnia, por que era comumente usada a Septuaginta com um catálogo bem maior, conforme é comprovado pelo testemunho do NT e as descobertas do Mar Morto e Massada?
Segundo, se este suposto cânon correspondesse aos livros da Septuaginta, logo não seria permitida a definição de qualquer outro cânon bíblico; então por que foi estabelecido o Cânon de Jâmnia?
Terceiro, os judeus alexandrinos e etíopes recusaram o Cânon de Jâmnia e até hoje guardam como sagrados os livros da Septuaginta. Se realmente este suposto cânon bíblico existisse, não haveria disputas entre os judeus sobre este tema; todos adotariam o mesmo conjunto de livros sagrados definidos pela Tradição Judaica.
Fílon de Alexandria, historiador e filósofo judeu, viveu entre os anos de 20 a 50 d.C. Em sua obra “Exposições sobre a Lei”, onde faz comentários sobre a doutrina da Torah (20), as referências ao Pentateuco são todas da Septuaginta, que possuía os livros deuterocanônicos e as partes deuterocanônicas de Daniel e Ester, não aceitas posteriormente pelos Judeus de Jâmnia.
Um dos especialistas sobre a vida de Fílon de Alexandria, o Prof. Ritter, quanto ao uso da Septuaginta pelo filósofo escreve:
“A princípio o texto que ele [Fílon] comenta é o da tradução grega dos Setenta; algumas diferenças que se assinalou com razão entre seu texto e aquele que possuímos atualmente dos Setenta se explicam de uma maneira satisfatória não pela leitura do texto hebraico, mas pelo fato de que nossa recensão é de origem posterior à da que ele usava” (RITTER, 1979).
Antes que alguém objete afirmando que a Tradição dos judeus palestinenses era diferente da Tradição dos judeus alexandrinos, devo lembrá-los que ambos os grupos manuseavam a versão grega da Septuaginta, portanto, possuíam a mesma Tradição Judaica.
A correspondência entre a Tradição Judaica Alexandrina e a Palestina é atestada pelo estudioso Wolfson:
“O judaísmo alexandrino, no tempo de Fílon, era do mesmo tronco do judaísmo farisaico, que então prosperava na Palestina, ambos tendo brotado daquele judaísmo macabeu [c. 165 a.C.] que fora moldado pelas atividades dos escribas” (WOLFSON, 1982).
Ainda segundo o estudioso Werner Jaeger:
“O grego era falado nas synagogai (21) por todo o Mediterrâneo, como se torna evidente pelo exemplo de Fílon de Alexandria, que não escreveu o seu grego literário para um público de gentios, mas para os seus compatriotas judeus altamente educados” (JAEGER, 1991).
Fílon de Alexandria, falava grego como era costume em seu tempo e utilizava as escrituras hebraicas através da Septuaginta. Isto era muito comum até entre os judeus da Palestina. Josefo defende os judeus de Alexandria de diversas calúnias, mostrando haver identidade entre eles e os judeus da palestina (JOSEFO, 2006, p. 96-102).
Se o cânon das Escrituras Hebraicas já estivesse fechado no tempo de Jesus, todos os judeus hoje (palestinos ou alexandrinos) observariam o mesmo conjunto de livros sagrados, e os fariseus de Jâmnia não precisariam se preocupar com isto no final do séc. I d.C.
Interessante é a constatação do estudioso Fedeli Pasquero:
“Na realidade, seguramente os judeus alexandrino no séc. I d.C. reconheciam como sagrados os livros deuterocanônicos [do AT]; não obstante a isso, eles estavam em plena comunhão de fé com os judeus da Palestina, coisa que não teria sido possível se houvesse divergências em relação aos livros sagrados. Com efeito, os doutores hebreus faziam uso de pelo menos alguns dos livros deuterocanônicos [do AT]; de modo especial, encontramos frequentemente citados Baruc, o Sirácida [Sabedoria de Siarc ou Eclesiástico], Tobias” (PASQUERO, 1986).
Sobre a possibilidade de um cânon de Escrituras hebraicas pré-definido, assim se manifesta Rost:
“[...] não havia um cânon oficial, ou, como diz a Mixná Yaddyim IV 6, não havia Ktby qds’, Escrituras sagradas, como grupo fechado. Mesmo na época em que se fixou a Mixná, por volta de 100 d.C., reinava ampla discussão entre os eruditos a respeito de saber se o Cântico dos Cântico ou o Eclesiastes de Salomão (Qohelet) faziam ou não parte do grupo, discussão esta que foi aplainada por uma sentença arbitral em favor da inclusão destes livros entre os escritos sagrados (Mixná Yadvim III 5 cd). As descobertas dos manuscritos do Mar Morto, provenientes do período que vai de 150 antes de Cristo até 70 da era cristã, em particular os que foram encontrados nas cavernas de Qumran, mostram-nos claramente que naquela época ainda não havia uma distinção rigorosa entre Escritura sagrada e menos sagrada [...] Mas o fato de um fragmento bastante extenso do Sirac hebraico, copiado em escrita esticométrica, vale dizer, executado com capricho e dispêndio de tempo, constituir um dos poucos restos de manuscritos descobertos em Masada, é prova da estiva que este escrito desfrutava no círculo dos zelotes, no correr do século I d.C” (ROST, 1980, p.13-14).
Durante a formação do Cânon Hebreu, alguns rabinos se opuseram também à inclusão do livro de Ester, conforme atesta o Prof. Samuel Sandmel (22):
“O livro de Ester, segundo os antigos rabinos, é o livro mais novo da Escritura. Houve, entre estes rabinos, quem não quisesse que ele fosse incluído na Escritura” (BIBLIA, 1974, Introduções Aos Livros Históricos, verb. Ester, xxiii).
Ainda conforme o Prof. Sandmel, a tradição rabínica quase excluiu do Cânon das Escritura Hebraicas, o livro do Profeta Ezequiel:
“O livro de Ezequiel foi julgado desapropriado para o cânon porque regulações dos capítulos 40 – 48 parecem contradizer regulações similares do Pentateuco. Como o sábio rabínico Hananias ben Ezequias foi capaz de resolver estas contradições com uma apurada interpretação, o livro salvou-se de ser abandonado juntamente com outros livros que não podiam circular publicamente” (Ibid.; Introduções Aos Livros Proféticos, xliii).
Além destes, também foram inicialmente contestados pelos rabinos, Jó (Ibid., xvii), Provérbios, Cântico dos Cânticos e Eclesiastes (Ibid., xxxi), concordando assim com o parecer de Rost.
Tudo isto mostra que realmente houve em Jâmnia um acordo entre os fariseus sobre os livros que deveriam ser considerados canônicos pelos judeus. Note o leitor que alguns livros do AT considerados canônicos por todos os cristãos, quase ficaram fora do Cânon Hebreu; livros estes que foram amplamente usados pelos antigos judeus. E se tivessem sido excluídos do Cânon Hebreu, isto significaria que jamais foram considerados canônicos antes? E os livros que os fariseus rejeitaram [os deuterocanônicos], será mesmo que não eram canônicos?
Notas
(16) Alguns autores identificam a Escola Rabínica em Jâmnia como o antigo Sinédrio (BERARDINO, 2002, verb. Jerusalém, p. 750). Entretanto há controvérsias entre os especialistas, já que o Sinédrio era predominantemente formado por Saduceus, que neste tempo foram desimados.
(17) Os judeus organizavam suas Escrituras conforme o número de letras de seu alfabeto.
(18) Na tradução original está Artajerjes (“j” no lugar do “x”), o que difere do uso comum em outras traduções. Por motivo de unidade textual mantive conforme o uso comum.
(19) Mesma razão da nota anterior.
(20) É como os Judeus chamam a Lei de Moisés.
(21) Sinagogas, onde os judeus se reuniam para o estudo das Sagradas Escrituras.
(22) Prof. de Bíblia e Literatura Helenística na Hebrew Union College, Cincinnati, Ohio - EUA.
Um cânon sagrado pré-existente?
Alguns afirmam que o Cânon de Jâmnia foi a confirmação de um Cânon Sagrado anterior e definido pela autêntica Tradição judaica.
Segundo esta tese, o fato de Jesus e os Apóstolos se referirem às Escrituras Sagradas disponíveis em seu tempo de forma geral (“Escrituras”), mostra que eles tinham em mente uma quantidade precisa de livros que estavam incluídos sob aqueles títulos gerais.
Apresenta-se como prova o registro do Evangelista Lucas ao diálogo entre Jesus e os discípulos na estrada de Emaús: ‘E começando por Moisés e por todos os profetas, explicava-lhes o que dele se achava em todas as Escrituras.”(Lc 24,27). A expressão “todas as Escrituras” demonstraria que já no tempo de Cristo, uma lista de livros canônicos já estava fixada.
Cita-se ainda João 5,39, quando Jesus manda os Fariseus, que eram os legítimos intérpretes da Lei (cf. Mt 23,1), verificarem que Nele se cumpriram todas as profecias messiânicas. Jesus ao utilizar a expressão “Escrituras” estaria se referindo a um conjunto de livros bem conhecido, tanto por Ele quanto pelos Fariseus.
Chama-se ainda a atenção à expressão “Moisés e os Profetas” (cf. Lc 24,27). “Moisés e os Profetas” ou “A Lei e os Profetas” seria a estrutura de como este cânon judeu estaria organizado, sendo que na seção “Lei”, estariam contidos também os Salmos (cf. João 10,34). Assim, se quer defender a existência de um cânon bíblico, organizado em uma tríplice estrutura: a Lei, os Profetas e os Salmos. Também se costuma fazer referência a Lc 24,44, onde Jesus ao aparecer aos apóstolos e discípulos lhes disse: “(...) era necessário que se cumprisse tudo o que de mim está escrito na Lei de Moisés, nos profetas e nos Salmos”.
Estes argumentos são bastante frágeis, pois em todas as referências apresentadas, Jesus está tentando demonstrar que Nele se cumprem todas as profecias messiânicas. E onde estão estas profecias? Estão justamente nos livros de Moisés, nos Profetas e nos Salmos. Desta forma, dentro do contexto em questão, é bem mais certo que Jesus esteja referenciando esta triplica estrutura, porque nela se encontram as profecias messiânicas, do que Ele esteja fazendo referência a um cânon sagrado existente em seu tempo.
Há também quem apresente como prova do suposto cânon, então confirmado pelo Cânon de Jâmnia, os testemunhos históricos de Flávio Josefo e Áquila (o qual criou uma nova versão grega das Escrituras hebraicas, que leva o seu nome).
O testemunho de Áquila é reconhecidamente posterior ao Cânon de Jâmnia, e por isso, também não pode ser aceito como prova; muito pelo contrário...
Por outro lado, reproduziremos abaixo o texto de Josefo, conforme consta em sua obra “Contra Apion”:
“38. É, pois natural, ou melhor dizendo, necessário, que não exista entre nós uma multiplicidade de livros em contradição entre si, senão somente vinte e dois (17) que contém os registros de toda história e que com toda justiça são dignos de confiança. 39. Deles, existem cinco de Moisés, os quais contêm as leis e a tradição desde a criação do homem até a morte de Moisés. Compreende, mais ou menos, um período de três mil anos. 40. Desde a morte de Moisés até Artaxerxes (18), sucessor de Xerxes (19) como rei dos persas, aos profetas posteriores a Moisés foram deixados os feitos do seu tempo em treze livros, os quatro restantes contém hinos a Deus e conselhos morais aos homens. 41. Também desde Artaxerxes [tempo do Profeta Esdras] até nossos dias cada acontecimento tem sido registrado; embora estes não sejam dignos da mesma confiança dos anteriores, porque não havia uma sucessão rigorosa de profetas. 42. Os feitos provam com claridade como nós nos acercamos das nossas próprias escrituras: havendo já transcorrido tanto tempo, ninguém se atreveu a adicionar, tirar ou trocar nada nelas “ (JOSEFO, 2006, p. 21-22).
Não é possível precisar se o testemunho de Josefo é anterior ou posterior ao Cânon de Jâmnia, devido à incerteza entre as datas do Cânon e seu testemunho.
Costuma-se dizer que “Contra Apion” foi terminada pelo ano 94; e o Cânon de Jâmnia, normalmente é referido pelos especialistas como sendo do ano 90. Entretanto, nenhuma destas datas é conclusiva; sabemos apenas que ambos são os últimos anos do séc I d.C.
Com efeito, não é possível precisar se o testemunho de Josefo é anterior ou não ao Cânon de Jâmnia, devido à incerteza entre as datas do Cânon e seu testemunho. Esta incerteza compromete por completo o testemunho de Josefo, pois não se sabe com certeza se o mesmo foi influenciado ou não pelo Cânon de Jâmnia. Porém, há indícios que sim.
Josefo era fariseu e os rabinos de Jâmnia também, assim possivelmente ele esteja simplesmente defendendo a posição de sua facção religiosa.
O prólogo da tradução Grega do Eclesiástico (ou Sabedoria de Sirac), livro escrito por volta de 130 a.C., portanto anterior ao testemunho de Josefo, parece contradizê-lo. Nele lemos:
“Pela Lei, pelos Profetas e por outros escritores que os sucederam, recebemos inúmeros ensinamentos importantes (...) Foi assim que após entregar-se particularmente ao estudo atento da Lei, dos Profetas e dos outros Escritos, transmitidos por nossos antepassados [...]”.
Enquanto o testemunho de Josefo procura restringir o Cânon Sagrado ao tempo de Esdras, “porque [depois de Esdras] não houve uma sucessão precisa de profetas”, o Eclesiástico parece ser mais amplo e fiel à História ao afirmar que “por outros escritores que os sucederam [os profetas], recebemos inúmeros ensinamentos importantes”.
O testemunho do Eclesiástico refere-se a livros posteriores ao tempo dos Profetas.
Veja o que estudioso protestante Leonard Rost tem a dizer sobre isso:
“Vê-se, pelo prólogo de Sirac [Eclesiástico ou Sabedoria de Sirac], que, além dos escritos assumidos no Cânon hebraico, traduziram-se também outros que parecem ter gozado de bastente estima como obras religiosas de edificação, em círculos mais ou menos amplos, até o final do século I d.C” (ROST, 1980, p.19).
Há ainda em Josefo um trecho bem polêmico, vejamos:
“havendo já transcorrido tanto tempo, ninguém se atreveu a adicionar, tirar ou trocar nada nelas [nas Escrituras]”.
Alguns entendem que neste trecho Josefo confirma que os livros escritos depois do tempo de Esdras não estavam dispostos num mesmo volume com os livros que foram escritos antes deste mesmo período (protocanônicos), pois isto configuraria um acréscimo nos primeiros.
Ora, ele está dizendo que nada foi alterado nos textos presentes nestes livros, nenhuma sílaba a mais, nenhuma a menos. Josefo não está se referindo à adição ou retirada de livros a um conjunto pré-estabelecido de outros livros.
A tese do Cânon pré-existente apresenta sérios problemas. Primeiro, se este suposto cânon correspondia ao Cânon de Jâmnia, por que era comumente usada a Septuaginta com um catálogo bem maior, conforme é comprovado pelo testemunho do NT e as descobertas do Mar Morto e Massada?
Segundo, se este suposto cânon correspondesse aos livros da Septuaginta, logo não seria permitida a definição de qualquer outro cânon bíblico; então por que foi estabelecido o Cânon de Jâmnia?
Terceiro, os judeus alexandrinos e etíopes recusaram o Cânon de Jâmnia e até hoje guardam como sagrados os livros da Septuaginta. Se realmente este suposto cânon bíblico existisse, não haveria disputas entre os judeus sobre este tema; todos adotariam o mesmo conjunto de livros sagrados definidos pela Tradição Judaica.
Fílon de Alexandria, historiador e filósofo judeu, viveu entre os anos de 20 a 50 d.C. Em sua obra “Exposições sobre a Lei”, onde faz comentários sobre a doutrina da Torah (20), as referências ao Pentateuco são todas da Septuaginta, que possuía os livros deuterocanônicos e as partes deuterocanônicas de Daniel e Ester, não aceitas posteriormente pelos Judeus de Jâmnia.
Um dos especialistas sobre a vida de Fílon de Alexandria, o Prof. Ritter, quanto ao uso da Septuaginta pelo filósofo escreve:
“A princípio o texto que ele [Fílon] comenta é o da tradução grega dos Setenta; algumas diferenças que se assinalou com razão entre seu texto e aquele que possuímos atualmente dos Setenta se explicam de uma maneira satisfatória não pela leitura do texto hebraico, mas pelo fato de que nossa recensão é de origem posterior à da que ele usava” (RITTER, 1979).
Antes que alguém objete afirmando que a Tradição dos judeus palestinenses era diferente da Tradição dos judeus alexandrinos, devo lembrá-los que ambos os grupos manuseavam a versão grega da Septuaginta, portanto, possuíam a mesma Tradição Judaica.
A correspondência entre a Tradição Judaica Alexandrina e a Palestina é atestada pelo estudioso Wolfson:
“O judaísmo alexandrino, no tempo de Fílon, era do mesmo tronco do judaísmo farisaico, que então prosperava na Palestina, ambos tendo brotado daquele judaísmo macabeu [c. 165 a.C.] que fora moldado pelas atividades dos escribas” (WOLFSON, 1982).
Ainda segundo o estudioso Werner Jaeger:
“O grego era falado nas synagogai (21) por todo o Mediterrâneo, como se torna evidente pelo exemplo de Fílon de Alexandria, que não escreveu o seu grego literário para um público de gentios, mas para os seus compatriotas judeus altamente educados” (JAEGER, 1991).
Fílon de Alexandria, falava grego como era costume em seu tempo e utilizava as escrituras hebraicas através da Septuaginta. Isto era muito comum até entre os judeus da Palestina. Josefo defende os judeus de Alexandria de diversas calúnias, mostrando haver identidade entre eles e os judeus da palestina (JOSEFO, 2006, p. 96-102).
Se o cânon das Escrituras Hebraicas já estivesse fechado no tempo de Jesus, todos os judeus hoje (palestinos ou alexandrinos) observariam o mesmo conjunto de livros sagrados, e os fariseus de Jâmnia não precisariam se preocupar com isto no final do séc. I d.C.
Interessante é a constatação do estudioso Fedeli Pasquero:
“Na realidade, seguramente os judeus alexandrino no séc. I d.C. reconheciam como sagrados os livros deuterocanônicos [do AT]; não obstante a isso, eles estavam em plena comunhão de fé com os judeus da Palestina, coisa que não teria sido possível se houvesse divergências em relação aos livros sagrados. Com efeito, os doutores hebreus faziam uso de pelo menos alguns dos livros deuterocanônicos [do AT]; de modo especial, encontramos frequentemente citados Baruc, o Sirácida [Sabedoria de Siarc ou Eclesiástico], Tobias” (PASQUERO, 1986).
Sobre a possibilidade de um cânon de Escrituras hebraicas pré-definido, assim se manifesta Rost:
“[...] não havia um cânon oficial, ou, como diz a Mixná Yaddyim IV 6, não havia Ktby qds’, Escrituras sagradas, como grupo fechado. Mesmo na época em que se fixou a Mixná, por volta de 100 d.C., reinava ampla discussão entre os eruditos a respeito de saber se o Cântico dos Cântico ou o Eclesiastes de Salomão (Qohelet) faziam ou não parte do grupo, discussão esta que foi aplainada por uma sentença arbitral em favor da inclusão destes livros entre os escritos sagrados (Mixná Yadvim III 5 cd). As descobertas dos manuscritos do Mar Morto, provenientes do período que vai de 150 antes de Cristo até 70 da era cristã, em particular os que foram encontrados nas cavernas de Qumran, mostram-nos claramente que naquela época ainda não havia uma distinção rigorosa entre Escritura sagrada e menos sagrada [...] Mas o fato de um fragmento bastante extenso do Sirac hebraico, copiado em escrita esticométrica, vale dizer, executado com capricho e dispêndio de tempo, constituir um dos poucos restos de manuscritos descobertos em Masada, é prova da estiva que este escrito desfrutava no círculo dos zelotes, no correr do século I d.C” (ROST, 1980, p.13-14).
Durante a formação do Cânon Hebreu, alguns rabinos se opuseram também à inclusão do livro de Ester, conforme atesta o Prof. Samuel Sandmel (22):
“O livro de Ester, segundo os antigos rabinos, é o livro mais novo da Escritura. Houve, entre estes rabinos, quem não quisesse que ele fosse incluído na Escritura” (BIBLIA, 1974, Introduções Aos Livros Históricos, verb. Ester, xxiii).
Ainda conforme o Prof. Sandmel, a tradição rabínica quase excluiu do Cânon das Escritura Hebraicas, o livro do Profeta Ezequiel:
“O livro de Ezequiel foi julgado desapropriado para o cânon porque regulações dos capítulos 40 – 48 parecem contradizer regulações similares do Pentateuco. Como o sábio rabínico Hananias ben Ezequias foi capaz de resolver estas contradições com uma apurada interpretação, o livro salvou-se de ser abandonado juntamente com outros livros que não podiam circular publicamente” (Ibid.; Introduções Aos Livros Proféticos, xliii).
Além destes, também foram inicialmente contestados pelos rabinos, Jó (Ibid., xvii), Provérbios, Cântico dos Cânticos e Eclesiastes (Ibid., xxxi), concordando assim com o parecer de Rost.
Tudo isto mostra que realmente houve em Jâmnia um acordo entre os fariseus sobre os livros que deveriam ser considerados canônicos pelos judeus. Note o leitor que alguns livros do AT considerados canônicos por todos os cristãos, quase ficaram fora do Cânon Hebreu; livros estes que foram amplamente usados pelos antigos judeus. E se tivessem sido excluídos do Cânon Hebreu, isto significaria que jamais foram considerados canônicos antes? E os livros que os fariseus rejeitaram [os deuterocanônicos], será mesmo que não eram canônicos?
Notas
(16) Alguns autores identificam a Escola Rabínica em Jâmnia como o antigo Sinédrio (BERARDINO, 2002, verb. Jerusalém, p. 750). Entretanto há controvérsias entre os especialistas, já que o Sinédrio era predominantemente formado por Saduceus, que neste tempo foram desimados.
(17) Os judeus organizavam suas Escrituras conforme o número de letras de seu alfabeto.
(18) Na tradução original está Artajerjes (“j” no lugar do “x”), o que difere do uso comum em outras traduções. Por motivo de unidade textual mantive conforme o uso comum.
(19) Mesma razão da nota anterior.
(20) É como os Judeus chamam a Lei de Moisés.
(21) Sinagogas, onde os judeus se reuniam para o estudo das Sagradas Escrituras.
(22) Prof. de Bíblia e Literatura Helenística na Hebrew Union College, Cincinnati, Ohio - EUA.
Onde nasceu Nossa Senhora?
Essa pergunta, versando sobre tema muito caro aos católicos, por diversas razões não encontra fácil resposta. A natividade da Virgem Santíssima é comemorada no dia 8 de setembro.
Para entender a escassez de informações nos primeiros séculos da Igreja, sobre a vida de Nossa Senhora, convém levar em conta as particularidades daquela época.
O mundo pagão, por efeito da decadência em que se encontrava, era politeísta, ou seja, os homens adoravam simultaneamente vários deuses. Os pagãos não achavam ilógico nem absurdo que houvesse várias divindades, ou que elas não fossem perfeitas. Pior ainda. Consideravam normal que os deuses dessem exemplo de devassidão moral, sendo, por exemplo, adúlteros, ladrões ou bêbados. Obviamente, nem todos os deuses eram apresentados como subjugados por esses vícios, mas o fato de haver vários deles nessas condições tornava imensamente árduo para os pagãos entender a noção católica do verdadeiro e único Deus, de perfeição infinita.
Por isso a primitiva Igreja teve muito cuidado ao apresentar Nossa Senhora como Mãe de Deus, pois aqueles povos, com forte influência do paganismo, rapidamente tenderiam a transformá-la numa deusa. Somente após a queda do Império Romano do Ocidente e a sucessiva cristianização dos povos começou a Igreja ? que nunca negou a importância fundamental da Virgem Santíssima na história da salvação ? a colocar Nossa Senhora na evidência que lhe compete e a exaltar suas maravilhas. E com isso, a fazer um bem indescritível às almas dos fiéis.
É fácil compreender por que nesse longo período, cerca de 400 anos, muitas informações a respeito da Santíssima Virgem tenham se perdido e outras se encontrem em fontes não inteiramente confiáveis. Não obstante, a Tradição da Igreja conservou fielmente aqueles atributos d?Ela que eram necessários para a integridade da fé dos católicos. O essencial foi transmitido, e, para um filho que ama sua Mãe, qualquer dado a respeito d?Ela é importante.
Entre esses dados, sobre os quais um véu de mistério permaneceu, está o local em que nasceu Nossa Senhora.
Belém, Seforis, ou Jerusalém
Três cidades disputam a honra de ter sido o local de nascimento da Mãe de Deus.(1)
A primeira é Belém. Deve-se essa tradição ao fato de Nossa Senhora ser de estirpe real, da casa de Davi. Sendo Belém a cidade de Davi, foi essa a razão pela qual São José e a Virgem Santíssima ? ambos descendentes do Profeta-Rei ? dirigiram-se àquela localidade, por ocasião do censo romano que ordenava a todos registrarem-se no lugar originário de suas famílias. Por isso, o Menino Jesus nasceu em Belém, e é aclamado, no Evangelho, como Filho de Davi. O principal argumento dos que sustentam a tese de que Nossa Senhora nasceu em Belém encontra-se num documento intitulado De Nativitate S. Mariae, incluído na continuação das obras de São Jerônimo.
Outra tradição assinala a pequena localidade de Seforis, poucos quilômetros ao norte de Belém, como o local do nascimento da Virgem. Tal opinião tem como base que, já na época do Imperador Constantino, no início do século IV, foi construída uma igreja nessa localidade para celebrar o fato de ali terem residido São Joaquim e Santa Ana, pais de Nossa Senhora. Santo Epifânio menciona tal santuário. Os defensores de outras hipóteses assinalam que o fato de os genitores da Virgem Santíssima terem morado lá não indica necessariamente que Nossa Senhora haja nascido naquela localidade.
A hipótese que congrega maior número de adeptos é a de que Ela nasceu em Jerusalém. São Sofrônio, Patriarca de Jerusalém (634-638), escrevendo no ano 603, afirma claramente ser aquela a cidade natal de Maria Santíssima.(2) São João Damasceno defende a mesma posição.
A festa da Natividade
Na Igreja católica celebramos numerosas festas de santos. Havendo, felizmente, milhares de santos, comemoram-se milhares de festas. Ocorre que não se celebra a data de nascimento do santo, mas sim a de sua morte ? correspondendo ao dia da entrada dele na vida eterna. Somente em três casos comemoram-se as festas no dia do nascimento: Nosso Senhor Jesus Cristo (Natal); o nascimento de São João Batista; e a natividade da Santíssima Virgem.
A festa da Natividade era celebrada no Oriente católico muito antes de ser instituída no Ocidente. Segundo uma bela tradição, tal festa teve início quando São Maurílio a introduziu na diocese de Angers, na França, em conseqüência de uma revelação, no ano 430. Um senhor de Angers encontrava-se na pradaria de Marillais, na noite de 8 de setembro daquele ano, quando ouviu os anjos cantando no Céu. Perguntou-lhes qual o motivo do cântico. Responderam-lhe que cantavam em razão de sua alegria pelo nascimento de Nossa Senhora durante a noite daquele dia.(3)
Em Roma, já no século VII, encontra-se o registro da comemoração de tal festa. O Papa Sérgio tornou-a solene, mediante uma grande procissão.
Posteriormente, Fulberto, Bispo de Chartres, muito contribuiu para a difusão dessa data em toda a França. Finalmente, o Papa Inocêncio IV, em 1245, durante o Concilio de Lyon, estendeu a festividade para toda a Igreja.
Comemoração na atualidade
Por uma série de motivos curiosos, a festa da Natividade é celebrada muito especialmente na Itália e em Malta. Sendo o povo italiano muito vivo e propenso a celebrações familiares, não surpreende esse fato.
Em Malta, a principal comemoração da festa consiste numa solene procissão na localidade de Xaghra.(4)
Na cidade de Florença, no dia da festa, numerosas crianças dirigem-se ao rio Arno levando pequenas lanternas, que são colocadas na água e lentamente vão atravessando a cidade.
Na Sicília, na localidade de Mistretta, a população celebra a festa representando um baile entre dois gigantes. À primeira vista, pareceria que isto nada tem a ver com o fato histórico. Mas ele corresponde a uma tradição: foi encontrada uma imagem de Santa Ana com Nossa Senhora ainda menina. Levada à cidade, a imagem misteriosamente retornou ao local onde havia sido achada, e os habitantes julgaram que só poderia ter sido levada por gigantes. Proveio dessa lenda o costume.
Em Moliterno, ao contrário, existe o lindo e pitoresco costume de as meninas da localidade fixarem pequenas candeias nos chapéus de seus trajes típicos. Em determinado momento desaparecem as outras luzes e só permanecem as das meninas, que executam uma dança regional.
Curiosamente, em muitas localidades as luzes desempenham papel determinante na festa. Podemos conjeturar uma razão para o fato: a Natividade de Nossa Senhora representou o prenúncio da chegada ao mundo da Luz de Justiça, Nosso Senhor Jesus Cristo.
E-mail do autor: valdisgrinsteins@catolicismo.com.br
Para entender a escassez de informações nos primeiros séculos da Igreja, sobre a vida de Nossa Senhora, convém levar em conta as particularidades daquela época.
O mundo pagão, por efeito da decadência em que se encontrava, era politeísta, ou seja, os homens adoravam simultaneamente vários deuses. Os pagãos não achavam ilógico nem absurdo que houvesse várias divindades, ou que elas não fossem perfeitas. Pior ainda. Consideravam normal que os deuses dessem exemplo de devassidão moral, sendo, por exemplo, adúlteros, ladrões ou bêbados. Obviamente, nem todos os deuses eram apresentados como subjugados por esses vícios, mas o fato de haver vários deles nessas condições tornava imensamente árduo para os pagãos entender a noção católica do verdadeiro e único Deus, de perfeição infinita.
Por isso a primitiva Igreja teve muito cuidado ao apresentar Nossa Senhora como Mãe de Deus, pois aqueles povos, com forte influência do paganismo, rapidamente tenderiam a transformá-la numa deusa. Somente após a queda do Império Romano do Ocidente e a sucessiva cristianização dos povos começou a Igreja ? que nunca negou a importância fundamental da Virgem Santíssima na história da salvação ? a colocar Nossa Senhora na evidência que lhe compete e a exaltar suas maravilhas. E com isso, a fazer um bem indescritível às almas dos fiéis.
É fácil compreender por que nesse longo período, cerca de 400 anos, muitas informações a respeito da Santíssima Virgem tenham se perdido e outras se encontrem em fontes não inteiramente confiáveis. Não obstante, a Tradição da Igreja conservou fielmente aqueles atributos d?Ela que eram necessários para a integridade da fé dos católicos. O essencial foi transmitido, e, para um filho que ama sua Mãe, qualquer dado a respeito d?Ela é importante.
Entre esses dados, sobre os quais um véu de mistério permaneceu, está o local em que nasceu Nossa Senhora.
Belém, Seforis, ou Jerusalém
Três cidades disputam a honra de ter sido o local de nascimento da Mãe de Deus.(1)
A primeira é Belém. Deve-se essa tradição ao fato de Nossa Senhora ser de estirpe real, da casa de Davi. Sendo Belém a cidade de Davi, foi essa a razão pela qual São José e a Virgem Santíssima ? ambos descendentes do Profeta-Rei ? dirigiram-se àquela localidade, por ocasião do censo romano que ordenava a todos registrarem-se no lugar originário de suas famílias. Por isso, o Menino Jesus nasceu em Belém, e é aclamado, no Evangelho, como Filho de Davi. O principal argumento dos que sustentam a tese de que Nossa Senhora nasceu em Belém encontra-se num documento intitulado De Nativitate S. Mariae, incluído na continuação das obras de São Jerônimo.
Outra tradição assinala a pequena localidade de Seforis, poucos quilômetros ao norte de Belém, como o local do nascimento da Virgem. Tal opinião tem como base que, já na época do Imperador Constantino, no início do século IV, foi construída uma igreja nessa localidade para celebrar o fato de ali terem residido São Joaquim e Santa Ana, pais de Nossa Senhora. Santo Epifânio menciona tal santuário. Os defensores de outras hipóteses assinalam que o fato de os genitores da Virgem Santíssima terem morado lá não indica necessariamente que Nossa Senhora haja nascido naquela localidade.
A hipótese que congrega maior número de adeptos é a de que Ela nasceu em Jerusalém. São Sofrônio, Patriarca de Jerusalém (634-638), escrevendo no ano 603, afirma claramente ser aquela a cidade natal de Maria Santíssima.(2) São João Damasceno defende a mesma posição.
A festa da Natividade
Na Igreja católica celebramos numerosas festas de santos. Havendo, felizmente, milhares de santos, comemoram-se milhares de festas. Ocorre que não se celebra a data de nascimento do santo, mas sim a de sua morte ? correspondendo ao dia da entrada dele na vida eterna. Somente em três casos comemoram-se as festas no dia do nascimento: Nosso Senhor Jesus Cristo (Natal); o nascimento de São João Batista; e a natividade da Santíssima Virgem.
A festa da Natividade era celebrada no Oriente católico muito antes de ser instituída no Ocidente. Segundo uma bela tradição, tal festa teve início quando São Maurílio a introduziu na diocese de Angers, na França, em conseqüência de uma revelação, no ano 430. Um senhor de Angers encontrava-se na pradaria de Marillais, na noite de 8 de setembro daquele ano, quando ouviu os anjos cantando no Céu. Perguntou-lhes qual o motivo do cântico. Responderam-lhe que cantavam em razão de sua alegria pelo nascimento de Nossa Senhora durante a noite daquele dia.(3)
Em Roma, já no século VII, encontra-se o registro da comemoração de tal festa. O Papa Sérgio tornou-a solene, mediante uma grande procissão.
Posteriormente, Fulberto, Bispo de Chartres, muito contribuiu para a difusão dessa data em toda a França. Finalmente, o Papa Inocêncio IV, em 1245, durante o Concilio de Lyon, estendeu a festividade para toda a Igreja.
Comemoração na atualidade
Por uma série de motivos curiosos, a festa da Natividade é celebrada muito especialmente na Itália e em Malta. Sendo o povo italiano muito vivo e propenso a celebrações familiares, não surpreende esse fato.
Em Malta, a principal comemoração da festa consiste numa solene procissão na localidade de Xaghra.(4)
Na cidade de Florença, no dia da festa, numerosas crianças dirigem-se ao rio Arno levando pequenas lanternas, que são colocadas na água e lentamente vão atravessando a cidade.
Na Sicília, na localidade de Mistretta, a população celebra a festa representando um baile entre dois gigantes. À primeira vista, pareceria que isto nada tem a ver com o fato histórico. Mas ele corresponde a uma tradição: foi encontrada uma imagem de Santa Ana com Nossa Senhora ainda menina. Levada à cidade, a imagem misteriosamente retornou ao local onde havia sido achada, e os habitantes julgaram que só poderia ter sido levada por gigantes. Proveio dessa lenda o costume.
Em Moliterno, ao contrário, existe o lindo e pitoresco costume de as meninas da localidade fixarem pequenas candeias nos chapéus de seus trajes típicos. Em determinado momento desaparecem as outras luzes e só permanecem as das meninas, que executam uma dança regional.
Curiosamente, em muitas localidades as luzes desempenham papel determinante na festa. Podemos conjeturar uma razão para o fato: a Natividade de Nossa Senhora representou o prenúncio da chegada ao mundo da Luz de Justiça, Nosso Senhor Jesus Cristo.
E-mail do autor: valdisgrinsteins@catolicismo.com.br
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